5 de março de 2021

A Morte e A Vida


A Morte e A Vida é baseado nesse pequeno texto que escrevi há três anos depois de um sonho que tive. Basicamente se trata de como eu vejo a morte do meu ponto de vista como agnóstica e pode interessar aqueles que acreditam no conceito de reencarnação.

1

Ninguém sabe quando será ser último dia, exceto apenas por aqueles que assim o planejam, mas ainda assim talvez não seja o último. Por isso, muitos escolhem viver cada dia como se fosse o último, mas nem todo mundo está em condições de fazer essa escolha, que é moldada por diversos fatores.

Poucos são capazes de compreender porque alguém chegaria ao ponto de tirar a própria vida, mas tudo se resume a uma coisa: Dor. Uma dor tão grande, que consome o ser de tal maneira, que nada mais importa. Alguns chegam a ser recuperados, quando recebem o devido apoio, mas outros, que não tem tanta sorte, entram num caminho sem volta.

Essa sorte talvez seja moldada por algo além do nosso alcance, por algo que não compreendemos. Mesmo algumas pessoas céticas estão abertas à possibilidade de que talvez exista uma entidade superior, algo que talvez seja influenciado pelos fanáticos religiosos, que dizem ser os únicos a promover salvação, mas que ironicamente são os que mais fazem mal ao mundo, e por isso, muito se perde.

A vida de nossa protagonista sempre foi um dilema, um debate filosófico: Ser ou não ser? Qual era seu propósito? O que aprender com todo sofrimento que passou? Foram tantos anos vivendo sob fatores que a fazia se questionar tanto, que toda sua existência se resumiu à dor de viver. E como se já não fosse ruim o suficiente, acabara de perder as duas últimas pessoas que a mantinham viva, que a davam motivo para permanecer aqui.

Em uma manhã ensolarada de inverno, ela acordou, com o canto do galo do vizinho. Estava sozinha no mundo. Havia dormido por dois dias seguidos, fruto do trauma que sofreu ao ver morrer alguém com quem se importava. Fez uma promessa que não poderia manter, a de seguir em frente, mas não era mais forte o bastante para isso. Toda sua força havia se esgotado.

De pé, foi ao quintal pequeno e agora solitário. Parou em frente ao canteiro, onde trevos ocupavam todo o chão disponível, ao mesmo tempo em que sentia o sol matutino na pele. Fazia isso desde que seu cachorro havia morrido. Levou um ano até que fosse capaz de superar sua morte e sempre disse que uma parte sua havia ido com ele.

Não demorou a tomar uma decisão, a que adiou por muito tempo, a mais difícil que alguém poderia tomar. Era hora de partir. Voltou para dentro e fez os preparativos. Agiu como se estivesse fazendo algo normal e rotineiro. Publicou sua carta de despedida, que já estava pronta há algum tempo, e deitou no sofá da sala, já sonolenta devido aos medicamentos que tomou para não sentir a dor, aquela que seria sua última. A água morna do balde lhe foi confortável, tanto, que não demorou muito a dormir, dessa vez para não mais acordar.

Pensar que tudo acabaria ali, que não haveria um depois, foi o que a ajudou a tornar isso possível, considerando que todo o terror psicológico de sofrimento eterno pregado pelas religiões nada mais era se não um meio de prender as pessoas a uma vida miserável sob a promessa de uma suposta salvação eterna. Mas se tudo já estava escrito e definido, então por que viver?

Demorou um pouco até que percebesse que não acabou ali, com sua morte. Estava aberta a essa possibilidade. Se viu em um lugar estranho. Estava debaixo de uma imensa arvore de frente para um lago. Já havia se imaginado ali, antes. Será que a hipótese de ir para onde queria estava certa?

Enquanto debatia filosoficamente em sua mente todas as possibilidades, uma mulher parou ao seu lado. A pele era miscigenada como a sua havia sido em vida, mas o cabelo era longo e liso, vestia um longo vestido bege claro adornado e eram da mesma altura. Só então percebeu que ela não era mais tão alta quanto havia sido em vida.

Levou algum tempo até se dar conta de quem ela era.

– Aqui estamos, mais uma vez – disse a mulher
– Eu falhei – respondeu
– Não falhou.

Um breve silencio.

– Me diga, quando passou por isso antes? – ela continuou
– Nunca.
– Exato. Já passou por várias coisas, mas nunca isso.

Sem as emoções para moldar seus pensamentos, agora tudo estava claro.

– E agora?
– Tenho uma última tarefa. Você viveu várias vidas, passou por tantas experiências, que o tempo lhe tornou mais sábia que eu, mas antes que assuma meu lugar, primeiro você deve se provar digna, e por isso eu lhe atribuo com a responsabilidade da morte.

A deusa da morte, como seria considerada em vida. Consentiu com um gesto e seguiu até o lago. Seu reflexo mostrava a imagem daquilo que mais queria ter sido em sua última vida.

Agora era branca, com olhos castanho-claros, com cabelo moreno liso até os ombros e vestia um vestido preto com capa e capuz. Poderia assumir a forma que quisesse, mas aquela em especial era quem ela de fato resumia sua essência. Não que isso fizesse diferença no universo da consciência, ou espiritual, como muitos diriam, mas talvez fosse uma recompensa por ter vivido 27 anos sendo o oposto daquilo que deveria ser.

Como deusa da morte, sua tarefa era ajudar pessoas a superar a perda de outras ao mesmo tempo em que daria apoio para aqueles que estavam a passar pela experiência do suicídio a respeito de qual decisão tomar.

De todas as atribuições que poderia receber, do seu ponto de vista aquela era a mais fácil, e, por isso, não foi capaz de entender a razão pela qual foi designada para tal antes que se tornasse a guia mestra.

Após passar algum tempo, uma mulher em especial havia chamado sua atenção. Considerava suicídio apenas como um meio de vingança. Não era novidade, exceto pelo fato que ela era a única pessoa viva dentre todas que era capaz de vê-la. Sua presença a chocou e causou um grande susto, num primeiro momento, mas depois, despertou curiosidade.

Era a primeira vez que havia presenciado aquilo, em mais de um milênio de existência. O fato não lhe era estranho, tinha conhecimento que era possível, mas era tão raro, que nunca pensou que algum dia pudesse acontecer com ela. Talvez fosse por isso que a mestra havia lhe atribuído tal tarefa.

Tinha experiência para lidar com as mais variadas situações, mas como aquilo era algo tão absurdamente novo, não sabia como agir. As duas ficaram paralisadas se olhando.

– Quem é você? – Perguntou a mulher
– Você pode me ver? – Respondeu em dúvida
– É claro que eu posso. É mais alguma alucinação da minha cabeça?
– Não. Eu sou real.
– Veio nos roubar?
– Também não.
– Então o que?
– Acreditaria se eu dissesse que não sou desse mundo?
– Talvez. É alienígena?
– Não estou viva.
– Ah então é um fantasma.
– É mais complexo que apenas fantasma. Isso não te assusta?
– Nem um pouco. Eu tenho algum tipo de transtorno psiquiátrico, então já estou acostumada.
– Mas lembre-se que eu sou real.
– Eu sei. Minha família é espírita, então acredito que seja.
– Eu normalmente me comunico com as pessoas através de contato, posso tentar fazer isso contigo? Vai ser mais fácil eu explicar porque estou aqui.
– Claro.

Fez um gesto para se tocarem através da mão. Não levou mais do que um segundo.

– Veio me levar? a mulher perguntou
– Vim a ajudar a tomar uma decisão. O que você realmente quer?
– Não sei dizer. Estou perdida.
– Sente-se e feche os olhos.
– Por quê?
– Apenas faça.

Sentou de frente para a mulher e fechou os olhos. Era como podia se comunicar com quem estava vivo, mas de maneira que a pessoa não percebesse. Guiou-a a tomar uma decisão pesando os fatos da vida dela como em uma balança.

– É um jeito muito diferente de colocar a cabeça no lugar – disse a mulher – Me sinto outra pessoa. Posso te pedir uma coisa?
– Peça.
– Pode ser uma guia para mim?

Consentiu com em um gesto com a cabeça e saiu.

Ao voltar para o estado de consciência, procurou pela mestra para saber se agiu de maneira adequada e se deveria seguir em frente. Para sua surpresa, havia se comportado da maneira que era esperado.

Fazer o papel de morte não significava que obrigatoriamente deveria apenas ajudar a lidar com o fim da vida, acima disto ela era uma guia, que tinha a liberdade de orientar para que o ser pudesse evoluir e melhorar de maneira que contribuísse para um melhor equilíbrio próprio e coletivo, especialmente naquele tempo onde isso estava cada vez mais raro devido ao desequilíbrio. Ser a "deusa da morte" era um mero título, tal como poderia ser a "deusa da vida".

2

Durante alguns meses, ela visitou periodicamente a mulher, aconselhando-a a lidar com situações que tinha dificuldade, mas de maneira que não a fizesse obter vantagens indevidas. Com a proximidade entre elas, não foi difícil que logo estivessem conversando sobre as experiências que a deusa da morte teve.

– Queria te perguntar algo... – disse a mulher – Voltaria a viver?
– Talvez, sob certas condições, mas no tempo presente eu não sinto mais vontade de experimentar novamente a vida. Se houvesse a oportunidade de viver outra vez a década de 2000 com a idade que eu tinha, desde que eu pudesse determinar as condições, creio que sim, mas não é possível.
– Podemos escolher como vamos nascer?
– Não, mas existem ocasiões em que é permitido, como uma "reparação". Se eu continuasse para uma nova vida, teria esse direito como um contrapeso em comparação a última.
– Se importa em falar sobre isso? Eu sei que morreu por suicídio, mas nunca disse sobre o que te levou a isso.
– Eu era uma mulher transgênero. Tive minha identidade negada a maior parte da vida, e quando assumi, pouco fui respeitada. Acredito que você saiba como é a vida de alguém assim. Por causa disso, um vazio tomou conta de mim desde que eu era criança, algo que só foi crescendo durante a vida. Chegou um momento que nada mais importava, mas não era só a depressão, sentia um cansaço tão grande, que viver não tinha mais sentido. Um cansaço da alma, como se eu já tivesse atingido meu limite de reencarnações.
– Quantos anos tem?
– Algo em torno de dois mil, o equivalente a uma centena de vidas.
– É comum isso?
– Não. A maioria vive apenas mil anos, mas isso depende do propósito de cada um. Eu mesma não esperava ter vivido tanto.
– Cumpriu seu propósito?
– Acredito que não. Ainda existem objetivos que eu não alcancei.
– Estou curiosa com uma coisa: Você disse que será a próxima mestra, certo?
– Sim.
– O que vai acontecer com a atual mestra?
– Ela alcançou um nível de evolução no qual não há mais nada para fazer. Já aprendeu tudo que era possível e não está mais disposta a ensinar, pois o cansaço acumulado é demasiado grande, então quando eu me tornar a mestra, ela irá se retirar e meditar até que sua energia vire parte do universo, para que todos tenhamos a oportunidade de existir.
– Ciclo vida, morte e renascimento.
– Do seu ponto de vista, sim.
– Esse é o destino de todo mundo?
– Não. Alguns saem do nosso sistema solar e buscam evoluir mais através de outras civilizações.
– Então aliens existem?
– Existem. Quando for a minha vez de passar o fardo de ser mestre a outro que esteja apto, eu procure por outros mundos. Já que tocamos no assunto, aproveito para te contar uma história:

"Há milhões de anos, quando Vênus e a Terra desenvolveram condições propícias para o surgimento da vida, um cometa vindo de fora do sistema solar e que continha substâncias vitais capaz de se criar um ecossistema tão diverso quanto o nosso, passou raspando pela atmosfera de Vênus, fazendo com que parte da rocha se desfragmentasse e caísse no planeta, ao mesmo tempo que o desviou de seu percurso original e o colocou em rota de colisão com a Terra, permitindo assim que ambos os planetas pudessem desenvolver vida.

Por algum motivo, algo que eu não sou capaz de explicar, Vênus teve esse desenvolvimento um pouco mais acerelado que o da Terra. Vinte mil anos atrás, o ser humano moderno de lá havia atingido o auge de sua evolução, o que marcou o surgimento de civilizações. Com o passar do tempo, a diferenças entre diferentes povos fez com que o planeta enfrentasse os mais variados conflitos, não muito diferente da Terra, mas a diferença é que cerca de sete mil e quinhentos anos de guerras fez com que o frágil ecossistema de Vênus começasse a entrar em colapso. Ainda assim levou mais quinhentos anos até que essas civilizações formassem um acordo de paz.

A partir de então, iniciou-se uma corrida contra o tempo. Aquela nova sociedade unificada tinha um único objetivo a ser alcançado: reverter os danos causados. Mas para Vênus era tarde. Se eles tivessem uma tecnologia semelhante à da Terra atual, talvez o dano tivesse sido revertido, porém eles praticamente desenvolveram sua ciência do zero, o que levou cerca de mil anos até que percebessem que apenas poderiam retardar sua extinção.

Mesmo com todos os motivos para desistir, eles seguiram adiante aperfeiçoando-se cada vez mais. Quando descobriram a astronomia e foram capazes de ver a Terra pela primeira vez, ficaram maravilhados com o fértil planeta vizinho. A partir daquela descoberta, alguns priorizaram pela descoberta de algum veículo que fosse capaz de voar. Se isso fosse alcançado, eles talvez pudessem até mesmo imigrar para o novo desconhecido.

Apenas há dez mil anos, eles foram capazes de atingir seu último objetivo, numa última esperança de salvar o que restava da civilização venusiana: a construção de três naves que fossem capaz de deixar o planeta e chegar ao vizinho em segurança. Era um plano arriscado, pois só tinham tempo uma única tentativa. Alguns escolheram sacrificar-se ficando para trás, como um ato heroico, para garantir que aquelas três naves deixassem sua terra natal.

A missão foi um sucesso, mas devido ao tempo prologando de lançamento entre as naves, cada uma caiu em um continente diferente quando alcançou a Terra. A primeira atingiu o solo terrestre na América do Norte, a segunda em algum lugar da Europa Nórdica e a terceira próxima à Península Coreana. Era claro que aqueles que estavam em naves diferentes nunca mais se veriam em vida, e isso era uma consequência que eles haviam assumido. Devido a sua semelhança física com os povos terrestres que começavam a surgir tal como os venusianos há vinte mil anos, não foi difícil para que se misturassem e os ensinassem coisas básicas como agricultura, escrita e linguagens.

Apesar de todo o esforço que fizeram para que sua civilização não fosse simplesmente extinta, decidiram manter suas origens como segredo, pois acreditavam que dessa maneira não iriam interferir no desenvolvimento da civilização terrestre."

– Uau – disse a mulher, perplexa – Isso aconteceu mesmo?
– Aconteceu.
– Você estava lá?
– Não, mas a mestra estava. Ela é o último "espírito" existente que nasceu em Vênus.
– Por que usou aspas?
– É a maneira como você entende o que nós somos quando não vivemos mais. Eu sei que deve ter muitas perguntas em mente, mas não posso falar mais que isso. Eu só contei essa história, pois talvez a humanidade nunca descubra mais sobre seu passado. A Terra hoje segue o mesmo caminho pelo qual Vênus passou. Bem, preciso ir agora.
– Espere!

E assim ela saiu. Sentiu que havia contado mais do que deveria. Uma coisa é ser uma guia, e outra dar as respostas mastigadas. Talvez não haja impacto negativo por ter contado a história da humanidade, até mesmo porque além dela, só alguns a conheciam, pois a mestra só a contou para poucos. Era improvável que em vida isso pudesse ser descoberto. Aquela mulher poderia apresentar a história como uma tese científica a ser provada, mas muitos a desacreditariam por conta de sua doença.

Como estava livre para voar pelo mundo, parou às margens de um largo canal em algum lugar nos fiordes da Noruega para refletir sobre aquela história. A mestra havia contado-a antes de sua antepenúltima vida, o que lhe inspirou a se tornar astrônoma naquela encarnação, mas até então nunca havia parado para refletir sobre ela.

Se aqueles que vieram de Vênus tivessem falado sobre suas origens, possivelmente a civilização da Terra não estivesse percorrendo o mesmo caminho. Era curioso a história se repetir em mundos diferentes. Talvez fosse hora de permitir um pouco mais de interferência nas pessoas que simplesmente guia-las, mas sabia que era proibido pelas leis do universo, mesmo que a vida nesse sistema solar se tornasse extinta. O próprio universo, porém, sofria com suas leis severas.

Esse tipo de fardo era o que lhe incomodava em se tornar mestra. Poderia recusar o cargo, mas não o fez em respeito a atual ocupante do mesmo, pois sabia que ela havia passado e muito da hora de retirar-se para sua meditação final e era a única apta a ocupá-lo.

Se sentia de mãos atadas. Muitos, quando alcançavam a mesma posição, viam que o fardo era demasiado grande e se retiravam para meditação ou reencarnavam. Isso era algo que não devia acontecer, entretanto, ganhou força com o tempo devido ao desequilíbrio.

Esse desbalanceamento entre a energia positiva, que se renovava e servia de suporte para a vida, e a energia destrutiva, que consumia a vida até que se extinguisse, era algo que ocupava bastante seus pensamentos ultimamente. Como mestra, ela deveria buscar um meio de frear este avanço, mas como iria fazer isso, se nem aquela que foi sua guia e existe há mais de dez mil anos foi capaz?

Incerteza e medo eram emoções que ela não deveria sentir enquanto "espírito", muito menos deveriam interferir em seus julgamentos. Nessas horas ela sentia falta de estar viva, de apenas ir para a cama e dormir quando estava aflita. Mas havia feito sua escolha e aceitou suas consequências.

Tomada por pensamentos, não havia notado que a mestra estava bem ali ao seu lado.

– Essas incertezas que lhe afligem também me afetaram quando eu estava prestes a me tornar mestra.
– Pôde sentir?
– Não se preocupe. Se eu te escolhi, foi porque eu tive a plena certeza de que eu a considero digna para assumir meu lugar.
– Não entendo. Se sou digna, por que assumir o papel de "deusa da morte"?
– Não é pelo "papel", mas quem você encontrou enquanto atribuída de tal tarefa. Quando o universo permite que isso aconteça, está nos preparando para algo. O que é, exatamente, cabe a vocês duas descobrirem.
– Sabia que ia acontecer?
– Acontece sempre que um novo candidato a mestre aceita a função.
– Já passou por isso?
– Não posso falar das experiências que eu e meus antecessores tiveram. Esses mistérios...
– Vou ter que descobrir sozinha.
– Não fique frustrada. Com o tempo vai entender porque muitas coisas eu não posso falar, pelo menos não para uma futura mestra.

Agora ela havia entendido. Tudo fazia parte de um teste, um treinamento. Sabia que a mestra era capaz de sentir coisas que iriam acontecer, mas nunca encontrou uma explicação. Mesmo com dois mil anos, às vezes era difícil ter sempre em mente que, para algumas perguntas, não existia resposta.

Melhorar suas percepções talvez a fizessem solucionar esse grande quebra-cabeças que é o universo. Se quisesse desenvolver com maestria tal habilidade, teria que parar de se comportar como um "espírito" que acabou de conhecer o pós -vida pela primeira vez, e agir como o esperado para alguém com sua experiência.

Não muito tempo depois de voltar ao estado de consciência, sentiu sua presença ser requisitada por um guia que considerava como um grande amigo. Ele estava tendo dificuldades em lidar com uma mulher que estava conhecendo o pós-vida pela primeira vez e estava em pânico por ver que tudo aquilo que ela acreditou em vida, era apenas mito.

Era o tipo de situação que preferia não ter de lidar, mas como mestra, ela de forma alguma poderia se isentar da responsabilidade de fazê-la perceber o que é real.

A mulher ficou espantada com sua presença por causa da aparência que havia escolhido e mandou-a se afastar gritando nomes de demônios ao mesmo tempo em que chamava o tempo todo pelo deus no qual ela passou a vida adorando.

Para casos assim, não havia uma abordagem fácil. A única saída era pegar a mulher pelos braços e se comunicar com ela de forma semelhante como era feito com os vivos. Levou algum tempo até que ela começasse a ceder e deixá-la conversar, mentalmente.

Mostrou-a uma pequena centelha dos mistérios do universo e guiou-a para aceitação da maneira mais simples possível, fazendo-a perceber que não havia motivos para ter medo, algo que era complicado, considerando que ela havia vivido uma vida sob o temor do castigo eterno.

Levou algum tempo até que ela caísse em si. O choque havia sido muito grande. Ao se acalmar, sentiu-se muito grata pelo acolhimento que teve, embora ainda estivesse um pouco perdida a respeito do que viria a seguir. Até que estivesse pronta para encarar uma nova vida, poderia ficar e observar o estado de consciência para que começasse a desenvolver as percepções básicas do ser.

3

Com o passar do tempo, desejou diminuir a frequência com que se encontrava com Sabrina, a única pessoa viva que podia vê-la, mas sabia que seria errado. O que temia em relação a esse encontros, era a intimidade que se criou entre elas, se preocupava que isso poderia prejudicar a vida dela de alguma forma.

Em uma noite de céu estrelado, visitou-a enquanto estava no sítio dos pais, no interior. Ela estava sentada no gramado a alguns metros de distância da casa, como se esperasse pela visita da deusa, que ao chegar, sentou ao lado dela.

– Já nos encontramos várias vezes, – Sabrina disse – mas nunca me disse seu nome.
– Bem, no "mundo espiritual" nós não usamos nomes, mas pode me chamar de Cassandra.
– Acho que Cassandra combina bastante contigo. Então, Cassie, sabe como surgiu o universo?
– Não. Ninguém sabe, exceto apenas por aquela que chamam de "mãe do universo", a primeira de todos, mas ela sumiu.
– Como assim sumiu?
– Ela desapareceu há cerca de 50 mil anos e nunca mais foi vista.
– Talvez tenha se retirado para a meditação final, como você disse que a sua mestra fará.
– Pode parecer que sim, mas de acordo com o "alien" quem nos contou a história dela, ela ainda está por aí.
– E se ele mentiu?
– Não acredito que tenha mentido. Não existe motivos para isso no estado de consciência, pois poderíamos prever a mentira.
– Queria ter esse poder.
– Não é exatamente um poder.

Houve um breve silêncio.

– Já tentou procurar por ela?
– Já. Quando ouvi a história, fiquei tão obcecada, que praticamente dediquei minha vida seguinte a astrônoma, procurando por quaisquer sinais incomuns em sistemas solares a 50 mil anos luz daqui.
– E se você for pessoalmente?
– Poderia ter ido, mas não quis. Tive receio.
– Você com receio?
– Por mais que eu seja um "espírito", ou uma "deusa", não estou completamente livre de emoções, porém elas não podem afetar minha capacidade de julgamento.
– Mas esse temor não estaria afetando?
– Nesse caso é diferente. Nem todo mundo toma a decisão de sair em busca de outras civilizações, e muitos dos que assim escolhem, voltam atrás. É um caminho sem volta e existem muitos perigos lá fora. Não estou preparada o suficiente para isso.
– Queria poder ajudar. Você já me ajudou tanto.
– Há um jeito, mas precisa de um telescópio específico e uma câmera DSLR. Na década de 1960, fiz algumas pesquisas, mas os equipamentos que os soviéticos me permitiam ter eram bem limitados. Talvez você tenha mais sucesso.
– Meu sonho era me formar em astronomia, mas por causa da minha doença, meus pais disseram que nunca iriam deixar que eu entrasse em uma universidade.

Cassandra naquele momento desejou fazer algo por ela. Isso a fazia pensar em todo o fardo que viveu durante sua última vida. Poderia manipular os pais dela para que permitissem que ela realizasse seu sonho, mas não o faria. Não estava ali para isso e muito menos queria ser corrompida pelo desequilíbrio.

Só o que lhe restava era fazer algumas observações sobre a pesquisa que havia feito, para que ela não ficasse tão perdida procurando por um sistema solar específico na faixa dos 50 mil anos luz de distância. Por mais que parece uma perda de tempo, sua intuição dizia que estava no caminho correto.

4

Passados alguns meses, Sabrina havia conseguido o equipamento sugerido e sempre passava as noites procurando por alguma descoberta no espaço. Tentava convencer os pais de que sua doença não era uma barreira para que ela seguisse com seus sonhos e iria provar. Para isso, permaneceu no sítio, já que no interior os efeitos da poluição de iluminação das cidades era menor.

Cassandra aparentava estar um pouco surpresa com aquela dedicação, mas permaneceu em silêncio, apenas observando. Ela mesma agiu igual durante a corrida espacial entre União Soviética e EUA, porém com menos recursos. Astronomia havia sido o único ponto bom daquela vida, que foi sua antepenúltima. Foi morta em 1966, sob acusação de traição.

– Preciso confessar algo – Sabrina disse – Depois de todo esse tempo que estamos juntas, eu meio que estou sentindo algo por você.
– Por mim? Sabrina, eu nem mesmo estou viva.
– Eu sei, mas de todas as pessoas que conheci até hoje, você foi a que melhor me tratou.
– Estou aqui para ser apenas uma guia espiritual sua.
– Você não me considera uma amiga?
– Não disse isso.
– Também não disse que sou uma amiga.
– Eu te considero sim como uma amiga, mas isso é uma coisa. Preciso dizer que estou preocupada contigo. Desde que começamos a nos ver, você tem se isolado mais, se fechado mais com os outros, e isso não é bom.
– Ninguém me entende como você. As pessoas geralmente me tratam como lixo, quando sabem da minha doença. Você foi a primeira em muito tempo que me tratou bem desde que nos conhecemos, mesmo sabendo tudo sobre mim.
– Antes de eu morrer, pela última vez, me senti igual a você. Não é bom simplesmente se afastar de todos. Chega uma hora que se torna desesperador e você perde todas as esperanças. Como você mesma disse, sabendo tudo sobre você, sei que não é bem assim. Existem sim pessoas que te tratam bem mesmo sabendo da sua doença. Não se afaste delas. Não cometa o mesmo erro que eu cometi.

Sabrina se afastou do telescópio e começou a chorar.

– Eu sei que é difícil – Cassandra disse – Acho que preciso parar de te ver por algum tempo.
– Não! Por favor, não faça isso!
– Me promete que não vai mais se isolar?
– Sim, prometo.

Cassandra se aproximou dela e lhe deu um abraço. Se estivesse em seu lugar, provavelmente teria desistido, como foi em sua última vida, mas ali ela precisava ser uma fonte de inspiração, pois por mais que aquela fosse uma experiência importante, é também um trauma permanente que marca o ser de tal maneira, que alguns se deixam corromper pelo desequilíbrio.

– Vamos esquecer isso, ok? – Sabrina disse
– Tudo bem.
– Sabe, desde que me disse seu nome, estou curiosa com sua aparência.
– Eu a escolhi.
– Podemos escolher?
– Podemos. Geralmente ela é moldada de acordo com nossa última vida. Em corpo eu sou como gostaria de ter sido e as minhas roupas marcam meus traumas e minha morte.
– Então não veste preto apenas por ser a deusa da morte?
– Não.
– E sua mestra?
– Ela é negra, mas de pele clara, tem cabelo liso e usa um vestido bege longo. Permaneceu como havia sido em sua última vida, na qual foi escrava.
– O que aconteceu com as pessoas que causaram tudo aquilo? Sofreram algum tipo de punição?
– O conceito de punição, céu e inferno, foi criado pela humanidade como um meio de manter submissos aqueles que eram considerados como inferiores. As pessoas que causam um grande mal, são afetadas severamente de várias formas por aquilo que fizeram. Alguns voltam tentam desfazer tudo aquilo de ruim que causaram, começando por sentir na pele, enquanto outros são totalmente consumidos pelo desequilíbrio e se transformam em matéria cujo único objetivo é sugar a vida. Não é como eu gostaria que fosse, mas é assim que o universo funciona.
– Acha que esse aumento no desequilíbrio tem a ver o com desaparecimento daquela que foi a primeira?
– É possível.
– Outros procuram por ela? Os aliens?
– Não sei. Não são muitos que permanecem no estado de consciência. A grande maioria prefere os confortos que a vida pode oferecer, mesmo que nem sempre os alcancem. Além disso, raramente temos contato externo. Faz milênios desde o último.
– Espero conseguir encontrar algo que ajude a resolver esse mistério.

Cassandra também esperava isso, embora fosse como procurar uma agulha em um palheiro, e sem qualquer certeza de sucesso.

Voltou para seu lugar favorito na Noruega para refletir sobre o último encontro. Não negava que também sentia algo por ela, mas não parecia certo. Alguns casais levavam seu amor para além da vida, fosse no estado de consciência ou em vidas futuras. Ela, porém, mesmo com mais de dois mil anos, nunca teve alguém assim. Talvez Sabrina fosse esse alguém, mas isso a incomodava de uma maneira que não compreendia.

Não haveriam experiências suficientes que a fizessem superar seus temores pelo desconhecido. Poderia ter saído do sistema solar e procurado pela mãe do universo ela mesma, mas não conseguia. Como poderia se tornar uma guia mestra se não era capaz de resolver seus assuntos pendentes? Será que sua mestra realmente fez certo e escolhê-la para o cargo?

Não, ela não poderia pensar assim. Esses auto questionamentos eram o que poderia levá-la a ser consumida pelo desequilíbrio, tal como foi quase consumida pelo ódio em vida. Embora aquilo tivesse afetado seu ser, precisava ser forte e estável, especialmente naquele momento.

Sentou no chão, tirou uma flauta do vestido, fechou os olhos e começou a tocar. A música era seu elixir, sua fonte de equilíbrio, era o que lhe inspirava a inspirar todos os que precisavam de sua ajuda. Sem perceber, sua mestra lhe observava de longe, com um olhar de satisfação. Não poderia ter feito escolha melhor.

Aos poucos, outros seres do estado de consciência, como ela, começavam a aparecer, atraídos por sua música suave. Era algo comum. Não só a faziam se sentir bem, como ajudavam a aumentar sua percepção, pois entrava em contato com todos a sua volta, uma sintonia de uma conversa espiritual coletiva. Nesses momentos entendia porque a mestra não podia lhe contar tudo. Era muito mais doce e prazeroso aprender daquele jeito.

Quando parava de tocar, todos saíam, aos poucos. Sua mestra se aproximou e parou ao seu lado, após levantar. Não era necessário que trocassem palavras ou entrassem em contato uma com a outra. Um simples olhar entre elas era suficiente. A percepção causava isso.

5

Levou alguns anos até que Sabrina conseguisse convencer os pais de que era capaz de superar sua doença e mostrar que poderia seguir seu sonho como qualquer pessoa normal. Fez diversas descobertas que levaram algumas universidades a convidá-la para estudar fora do país. Quanto a isso, eles mostraram certa resistência, mas concordaram, desde que um deles fosse junto.

Não havia obtido sucesso naquilo que mais procurava, seu único meio de ajudar uma deusa, mas não iria desistir. Agora entendia porque Cassandra havia ficado obcecada enquanto astrônoma da União Soviética.

Durante todo seu caminho, de sua casa até a universidade, foi acompanhada pela deusa. Isso a tranquilizou, pois ela lhe inspirava confiança e coragem. Temia viajar de avião, e para piorar, era sua primeira vez.

A simples presença de Cassandra ali não garantiria que tudo saísse como o esperado, mas sua intuição dizia que não havia com o que se preocupar. Ela realmente desejava que Sabrina chegasse em seu destino. Curiosamente, aquela também era sua primeira vez em um avião. Sentou em um lugar vago, próximo ao dela, pois queria experimentar aquilo como se estivesse viva.

Percebeu que ela queria poder ter conversado a viagem inteira até Heathrow, em Londres, mas não podia. Não seria agradável a ela ser vista falando sozinha dentro de um avião. De agora em diante, seria mais difícil poder conversar verbalmente, como ela preferia. Também não permitiu que fosse feito o contato mental, então tudo o que sobrou foi o silêncio.

Andar por aquele aeroporto pela primeira vez era uma sensação curiosa. Poderia ter feito isso quando quisesse em várias outras ocasiões, mas o estado de consciência a fazia esquecer da rotina dos vivos.

Continuaram a viagem de trem até Oxford, o que lhe agradava, pois era um sonho que não havia realizado em sua última vida – o de viajar de trem pela Europa, mesmo que não fosse de alta velocidade.

Não era a mesma coisa que estar viva lá , mas a viagem em si lhe parecia muito melhor estando "morta", e talvez se sentisse assim devido ao cansaço de ter vivido uma centena de vidas.

Ao final daquela jornada, teria que fazer algo que não queria, mas era necessário, e por isso, esperou até que o momento fosse favorável, não só permitissem se falar, mas um em que ela não seria afetada negativamente.

– Agora que você está aqui, – Cassandra disse – eu vou ter de me distanciar por algum tempo.
– Por quê?
– Você já mostrou que é capaz de ser independente depois de tudo o que fez para chegar aqui, agora você precisa seguir em frente.
– Mas eu só cheguei aqui com sua ajuda.
– Eu apenas lhe ajudei a tomar decisões. Você foi quem buscou estar aqui. E é por isso que devo me distanciar. Precisa confiar mais em si mesma e acreditar no seu potencial. Eu acredito em você.
– Jura? Isso significa muito pra mim.
– Não fique triste. Não é um adeus, mas eu não sei quando será a hora certa de voltar.
– Quero te dar um presente.

Sabrina tirou o colar com pingente de lua crescente que usava e o colocou na não esquerda de Cassandra, que passou a mão direita por cima dele antes que pudesse usá-lo. Para que pudesse usar o presente dado por um vivo, era necessário tirar o objeto do mundo dos vivos, permanentemente.

– Ficou bem em você – Sabrina disse – Combina bastante.
– Bem, antes de eu ir, também tenho algo para você.

Não era possível, entretanto, que um objeto "morto" voltasse ao mundo dos vivos, então o único presente que poderia lhe dar era a música de sua flauta. Sentou no chão do parque, tirou-a do vestido e começou a tocar.

Como de costume, os outros vieram, e Sabrina também podia vê-los, mas não se importou tanto, pois aquela melodia suave havia lhe levado às lágrimas. O parque estava vazio, então ninguém a veria chorando sentada naquele banco. Ser capaz de ver aqueles que não estavam vivos era um privilégio tanto quanto um fardo.

Ao parar de tocar, Cassandra fez um último contato mental, para lhe dar força, e saiu de sua maneira habitual, desaparecendo, assim como os outros "espíritos" o faziam quando guardava sua flauta.

Mesmo distante, continuaria a observá-la, de tempos em tempos, nos intervalos de sua tarefa como deusa da morte.

Dois anos depois, Sabrina parecia outra pessoa, mais confiante de si, especialmente depois de ser convidada a trabalhar para a NASA quando se formasse. Havia feito a descoberta que tanto queria, ou pelo menos esperava que fosse. Por mais que tivesse publicado nos mais diversos portais da imprensa, contar pessoalmente para Cassandra, depois de tanto tempo ausente, era algo que não tinha preço.

Percebeu que ela estava lá, na primeira fileira da plateia da palestra que dava a respeito. Teve de se segurar para não sair correndo e abraçá-la, algo que poderia lhe prejudicar, então permaneceu firme e continuou.

– Se trata de um sistema solar a 50 mil e seis anos luz daqui. O sol entrou em nova, mas o quarto planeta, que é semelhante a Terra e está em uma zona habitável, estava envolto em uma espécie de escudo que o protegeu da destruição.

Mentalmente ela dizia a Cassandra: "Mas, quando sua estrela enfim se tornou uma anã branca, aquele mundo permaneceu sendo o único vivo num sistema solar morto e escuro".

Naquele momento ela percebeu que a tarefa de solucionar aquele mistério não era sua, e sim de Sabrina, e por isso temia tanto sair do sistema solar. Aquela descoberta em si, porém, não era suficiente para solucioná-lo. Poderia não significar nada, mas nunca havia ouvido nada como aquilo, nem mesmo uma história de sua mestra.

Seu temor agora era a respeito dela, a única viva que podia lhe ver. Se sua missão tivesse sido cumprida, então poderia estar se aproximando do fim da vida. Precisava estar perto dela, de novo, e por isso resolveu voltar a fazer contato da mesma maneira de antes, mas sem alarmá-la.

Não sabia o que poderia acontecer dali para frente. Nem mesmo sua intuição lhe dava uma luz e isso a incomodava, porém tinha que se manter firme e aceitar o que quer que viesse.

Nada, porém, aconteceu até que ela se formasse, nos anos seguintes. Havia feito algumas outras descobertas, mas nada tão grandioso quanto àquela. O dia da cerimônia de formatura foi o mais feliz da vida dela. Até mesmo seus pais, que não acreditavam no seu potencial, ficaram emocionados em vê-la ali.

Tudo ia muito bem, até que o inesperado aconteceu. Um atentado terrorista contra estudantes estrangeiros próximo a estação de trem, causado por um membro de grupo nacionalista de extrema direita.

Sabrina estava entre os que haviam sido atropelados pelo caminhão. Seus pais já estavam mortos, mas ela lutava pela vida mesmo perdendo muito sangue.

Pessoas próximas corriam até os feridos para tentar ajudar no que podiam. Fizeram uma faixa em uma de suas pernas e falaram para ela segurar uma compressa sobre a parte inferior do abdome, numa tentativa de parar o sangramento até que o socorro chegasse.

Cassandra estava lá ao lado dela, mas nada podia fazer. Não porque não queria, mas porque tinha suas limitações.

– Eu não quero morrer – Sabrina disse à ela, chorando – Por favor, não me deixe morrer!
– Se dependesse de mim, você não morreria. Você não merece, não agora que realizou seu sonho, mas está fora do meu alcance.
– Dói demais.
– Eu sei. Vou ficar aqui.

Pegou na outra mão dela. Por mais difícil que fosse aquele momento, era sua função estar ali. Ajudar não só ela, mas todos a sua volta que ainda lutavam pela vida. Para isso, fez um elo mental com todos, e o manteria até que estivessem sob cuidados médicos.

Felizmente não demorou até que o socorro chegasse. Os paramédicos fizeram o que puderam para colocar Sabrina em uma maca levá-la às pressas até o hospital mais próximo.

Passou por diversos procedimentos médicos, sendo acompanhada de perto pela deusa o tempo todo. Infelizmente seu estado era grave e foi necessário ficar sob coma induzido na UTI.

Naquela condição, podia acessar temporariamente o estado de consciência. Muitos dos vivos religiosos que enfrentavam aquele momento, viam os seres que lá habitavam como anjos, pois era o que sua interpretação simplista lhes permitiram entender, mas ela sabia que era muito mais que isso.

Cassandra a levou até seu lugar favorito e tocou uma música.

6

Sabrina deixou a unidade intensiva, alguns dias depois. Já fora do coma, havia se recuperado consideravelmente, porém um osso de sua perna esquerda estava quebrado, mas isso não se comparava com a dor de ter perdido os pais. Por mais que eles não tivessem sido os melhores pais do mundo, ela se importava com eles.

– Nós quase sempre nos importamos – Cassandra disse, mentalmente – Na minha última vida, meu pai me humilhou por causa do que eu era, mas ainda assim eu me importava com ele, de certa forma. Minha mãe também não me aceitava, mas só não desisti antes por causa dela. Posso estar sendo hipócrita por não ter sido capaz de superar minha dor, mas acredito que você irá superar a sua.

Mas ela não a considerava hipócrita. Não a conheceu em vida, então não poderia mensurar suas dores.

Pode até não ter sido capaz de superar suas dores, mas o fardo que isso lhe trouxe era o de lidar com as dores de todos que naquele momento se encontravam. Não ter emoções que afetassem sua capacidade de julgamento ajudava bastante, mas não era totalmente livre de sentimentos. Ela também compartilhava das dores que as pessoas sentiam, e por causa disso, tocava sua flauta com uma frequência cada vez maior.

Ter um ponto de escape era essencial para o ocupante daquele cargo, algo que ajudasse a não permitir que o desequilíbrio tomasse conta. Um guia se dedicava a ajudar, mas também precisava de ajuda. No seu caso, ela ainda tinha a mestra, mas quando assumisse seu lugar, não teria ninguém além dela mesma.

Sua música doce apenas a fez dormir. Lutou um pouco contra o sono, por causa do coma, mas estava dopada. Adormecer não era ruim, pois ela precisava descansar. Havia passado por um grande trauma. Nem todos os estudantes atingidos haviam se recuperado tão bem quanto ela.

Eles não podiam ouvir a canção da flauta, mas sua sintonia era transmitida através do elo mental, o que lhes dava um pouco de conforto diante do que enfrentavam.

Quando parou de tocar, foi até a delegacia ver pessoalmente o responsável por aquele caos. Embora tivesse tentado se matar após o crime, sua arma falhou, o que permitiu a polícia prendê-lo com vida.

Só de olhar percebeu que não poderia fazer contato. Ele estava consumido pelo desequilíbrio. Não havia restado mais nada de bom nele.

Isso lhe fazia se questionar se esse atentado aconteceu naquele exato momento por uma razão, a de matar Sabrina. Como ela ainda estava viva, não era possível que já tivesse cumprido seu propósito em vida. Era claro que tinha relação com o mistério no qual investigavam.

O que lhe preocupava agora, era a possibilidade de haver outro atentado contra ela durante seu caminho até um dos centros de pesquisa da NASA, onde iria trabalhar.

Precisava protegê-la de alguma forma, mesmo que isso a fizesse assumir o risco de ser corrompida. Aceitaria se sacrificar para garantir o sucesso ela.

Ao voltar a Noruega, para meditar, encontrou a mestra esperando.

– Sinto que está deixando suas emoções controlarem seu julgamento – ela disse
– Estou?
– Não percebe?

Realmente estava, mas até então não havia se dado conta.

– O que sua intuição lhe diz? – a mestra continuou
– Que ela pode ter cumprido seu propósito, mas ainda está viva e bem.
– Mas você sabe que isso pode mudar.
– Ela não merece morrer.
– De fato não merece, mas nós podemos determinar isso?

Sabia que não.

– Sei que se sente mal com isso por causa do trauma que adquiriu devido ao suicídio, mas não deixe que isso te afete. Deixe-a ir se assim acontecer.

Estava em conflito interno. Não estava sendo capaz de manter emoção e razão em equilíbrio. Precisava tocar, mas não a flauta. Há dois séculos, um amigo havia lhe dado um violino antes de se retirar para sua meditação final, o que lhe inspirou a se tornar musicista em sua vida seguinte.

Raramente o tocava. Não que não gostasse, mas sim porque se sentia mais sintonizada com a flauta. Tirou o instrumento de uma bolsa que ficava em suas costas, por baixo da capa, algo que geralmente só fazia em ocasiões muito especiais, e começou a tocar.

Desta vez, sua música triste atraiu mais seres que o normal, uma melodia que ecoava tão distante, que talvez pudesse ser ouvida até mesmo pelos vivos. Uma deusa da morte que lamentava a morte de seu amor.

Sim, agora ela se lembrava. Sabrina havia sido um amor seu em outra vida, numa época onde era proibido, no mundo dos vivos, que duas mulheres pudessem se amar. Por causa disso, elas não se casaram, e por não terem se casado, foram acusadas de bruxaria e condenadas a morrer em uma fogueira. Duas das várias "bruxas" de Salém. Elas reencarnaram, na esperança de se reencontrar, mas isso nunca aconteceu, pelo menos não em vida.

Mas se ela se lembrava, significava que Sabrina estava morta.

Não havia percebido antes, mas ela estava ali, na sua frente, vestindo uma roupa igual, porém branca. Parou de tocar e foi abraçá-la.

– Vejo que manteve a mesma aparência – Cassandra disse
– Não havia porque mudar.

Ela estava bem antes de morrer, mas nada mais era do que a calmaria da tempestade. Por mais vontade de viver que tivesse, estava em paz. Cassandra também sentia isso e agora também estava em paz.

– E agora? – Cassandra perguntou
– Bem, ela disse que eu deveria me juntar a você em sua tarefa, mas acho que "deusa da vida" é uma definição melhor.
– Não importa, é só um título.

Sabrina tinha uma idade que girava em torno de meio milênio. Por não possuir tantas experiências quanto ela, seria como uma aprendiz de guia. Compartilhar o fardo deixava Cassandra um pouco mais aliviada.

Convidou-a a sentar ao seu lado no chão, para que continuasse tocando o violino, mas desta vez uma melodia suave, tal como era com a flauta. Ela não só aceitou, como quis acompanhar através do canto.

7

Alguns anos se passaram. Juntas, haviam ajudado inúmeras pessoas a tomarem suas decisões. A maioria terminou seguindo em frente na vida, mas nem todos possuíam os meios para tal, e muito menos poderiam alcançá-los, e para esses, fizeram questão de acompanhar até o pós-vida.

A mestra observou o progresso delas durante todo o tempo. Quando sua hora enfim chegou, quando seu esgotamento superou sua força de se manter ali, as chamou para informar que a partir de agora aquela tarefa não era mais de responsabilidade delas.

Como amiga, fez um último pedido a Cassandra, solicitando que a acompanhasse até o local de meditação final, uma caverna no interior do Everest, que era como uma janela para o universo. Embora estivesse no mundo dos vivos, nenhum vivo poderia pisar ali. Nem mesmo os animais ousavam se aproximar.

Sentaram no chão, uma de frente para a outra, e fizeram seu último contato. A mestra lhe mostrou suas lembranças de Vênus e o dia em que partiu para a Terra. Não poderia haver um último presente melhor que ver e sentir como era aquele planeta antes de se tornar um lugar inóspito. Fecharam os olhos, como uma despedida, e viu ela sua energia se somar do universo.

De todos os mais de dois mil anos de existência, aquele foi o momento mais marcante. Já havia acompanhado outras meditações finais, mas ver aquela, que foi sua maior amiga, partir, era diferente. O estado de consciência parecia mais vazio que o habitual, mas deveria seguir em frente e honrar a confiança que lhe foi dada, considerando que sua responsabilidade agora era grande.

Sabrina havia tomado a decisão de visitar o sistema solar que descobriu em vida, mas para isso precisava passar por uma série de testes que colocavam a prova sua capacidade de superar todos os seus limites antes que pudesse viajar pelo desconhecido.

Como mestra, era dever de Cassandra avalia-la durante o ritual do nômade, algo que havia acontecido pela última vez há cerca de um milênio. Só haviam dois resultados possíveis: Ou o objetivo era alcançado, ou o desequilíbrio a consumiria por suas falhas. O risco era grande, mas seu desejo de resolver o maior mistério do universo era maior.

Foram testes rigorosos, mas foi capaz de superar todos. No final, não escondeu que estava exausta, mas pôde manter o equilíbrio com êxito. Estava pronta, porém não partiria de súbito.

Propôs a nova mestra um ritual de amor eterno, para que nunca esquecessem uma da outra.

Debaixo daquela árvore onde Cassandra conheceu o pós-vida pela última vez, sentaram e se conectaram em elo.

– Prometo para sempre te lembrar – Sabrina disse
– Prometo nunca te esquecer
– Pois você é minha fonte de equilíbrio
– Minha fonte de inspiração
– Guia, amante e amiga
– Juramos aqui neste lugar
– Que o nosso amor é eterno - disseram juntas
– Quero que aceite um presente antes de partir – Cassandra disse ao tirar um colar com pingente de lua minguante de seu vestido e colocar em volta do pescoço dela.
– É igual ao que eu te dei.
– Sua roupa é igual a minha, então creio que estamos em sintonia.

Como deusa da morte, a lua crescente lembraria a importância da vida. Como deusa da vida, a lua minguante lembraria a importância da morte. Um ciclo essencial para o funcionamento do universo. Um equilíbrio que deveria ser mantido.

– Também tenho um presente para você – Sabrina disse

Mas ela não quis dizer qual era. Preferiu fazer surpresa. Cassandra já sabia o que era devido a percepção avançada, mas não quis estragar o momento. Foram até um baile que estava sendo ofertado por um hotel de luxo para comemorações de ano novo. Pela primeira vez estavam vestidas de maneira diferente da habitual. Vestidos formais, iguais, mas com as mesmas cores que usavam sempre. Preto e Branco. Sabrina aproveitou a música para convidá-la para dançar.

– Uma dança? – Cassandra perguntou
– Por que não? Nós duas não pudemos ter isso juntas em vida.
– Acho que entendo seu ponto.
– Vou sentir falta dessas coisas. A dança, a comida, os cheiros e sabores, os prazeres e as dores.
– Admito que também sinto falta de uma realidade mais simples, mas já tive minha cota.
– Deve ser exaustivo viver com a sua idade.
– Você não faz ideia. Espero que enquanto for mestra, meu dever não me faça viver de novo.

Aquela dança para Cassandra foi muito melhor do que qualquer música que já tenha tocado. Desejava que aquele momento não terminasse, que pudessem ficar paradas no tempo, como seres simples sem um destino tão complexo.

Às vezes o universo parecia cruel por exigir tanto, mas era o preço a se pagar se quisessem manter o equilíbrio em tempos que o desequilíbrio ganhava cada vez mais força. Alguns tinham que se sacrificar para que a vida durasse e prosperasse.

Aproveitaram a dança até o último segundo, quando a música parou e a coragem de virada de ano começou. Assim como os demais presentes, intimamente fizeram resoluções do que esperariam, mas diferente deles, não para o ano novo. Logo iriam se separar de novo, como se o universo não quisesse que ficassem juntas.

Ao sair de lá, já estavam mais uma vez com suas roupas habituais. Era enfim chegada a hora da despedida. Seguiram para a caverna no Everest, onde a viagem começaria.

Como mestra, era dever de Cassandra pedir que ela mostrasse seu plano de viagem a fim de evitar os riscos que poderiam ser previstos.

O conhecimento adquirido através das pesquisas que Sabrina havia feito, eram suficientes para melhorar o esboço de mapa da galáxia que tinham ali. Depois de traçada, a rota foi cuidadosamente analisada.

– Posso ser mais velha, – Cassandra disse – mas você foi uma astrônoma melhor que eu.
– Eu tive mais recursos.
– Evite esses sistemas próximos a buracos negros. Eles tendem a serem mais difíceis de manter o equilíbrio que o Normal. Já aquele sistema trinário ali, – disse apontando – em hipótese alguma você pode chegar perto dele. Não sei o que é, mas não sinto boa coisa vindo de lá. Também evite os sistemas próximos.
– É tão grave assim?
– Nunca senti nada parecido antes. Bem, não tenho mais nenhuma recomendação.
– E aqui estamos nós, de novo, nos despedindo.
– É o preço que pagamos para que outros possam existir e tenham conforto.
– O destino.
– Quero te dar mais uma coisa – tirou a flauta do vestido
– Sua flauta?
– Quero que leve.
– Mas você se sente tão em harmonia quando a toca.
– Tudo bem, ainda tenho o violino. E se eu quiser, posso fazer outra, mas quero que leve essa e a toque sempre que sentir que precisa de apoio.
– Certo. Prometo trazê-la de volta – disse, sem ter certeza se iria realmente voltar
– O universo pode até nos separar, mas nosso amor vai nos manter unidas...
– Porque ele é eterno – disseram juntas

E num piscar de olhos, Sabrina se foi.

Foram necessários anos para construir relações, mas bastou apenas uma semana para que a mestra se despedisse das suas duas melhores amigas. Era grata por não ter emoções que afetassem seu julgamento naquele momento. Nem mesmo sentia vontade em tocar o violino. Estava em paz, e por isso, tingiu de branco uma mecha de seu cabelo, mas ainda assim manteria as roupas escuras, como um meio de equilíbrio.

O estado de consciência agora parecia mais vazio, porém havia muito a fazer, como procurar por um possível novo candidato a se tornar aprendiz para assumir seu lugar, algo que poderia levar pelo menos dois séculos. 

Epílogo

Cassandra agora preferia meditar em um campo próximo ao mar, na Islândia. Trocou de local depois que as duas amigas partiram. O antigo, na Noruega, lhe fazia sentir-se em desarmonia devido às memórias que traziam. Precisava seguir em frente e ser firme, pois agora seria uma fonte de inspiração para muitos.

Enquanto meditava, não gostava que fosse interrompida, mas não agia de maneira rude com quem viesse em seu momento de silêncio, pois ninguém que não precisasse viria até ela. Alguns a temiam, viam como superior e não como amiga. Agir com cordialidade talvez mudasse isso.

Quando se tornou mestra, seu cargo anterior foi dado a alguém que não conhecia, mas que havia passado por uma experiência de morte semelhante a dela. Pela primeira vez desde que assumiram suas novas responsabilidades, ele veio até ela lhe pedir ajuda para lidar com um caso que não era capaz.

– Tudo bem – Cassandra disse – O que houve?
– O caso é o de uma criança que vivia pela primeira vez, mas foi morta aos sete anos e eu não tenho experiência com crianças.
– Pode deixar que eu assumo. Como foi a morte?
– O pai surtou quando descobriu que tinha um filho e o matou na primeira oportunidade que teve. Quando a polícia veio prendê-lo em flagrante, nem mesmo resistiu. Preferia viver como assassino a assumir a criança.
– Tenho mais experiências com crianças do que gostaria. Fui mulher em todas as vidas que vivi, mãe a maioria, mas não por escolha. Em mais da metade das vezes que pari, fui obrigada a assumir a maternidade porque a sociedade focada no homem enxerga a mulher como mero objeto de reprodução. Curioso é que os homens sempre exigem que nós tenhamos seus filhos, mas muitos não são capazes de os assumir.
– Prometo que farei o meu melhor para mudar isso.

Ou pelo menos ele faria o que estivesse ao seu alcance para mudar aquilo. Embora essa desarmonia parecesse ter sido influenciada pelo desequilíbrio, sentia-se a obrigação de fazer o que fosse para mudar isso. Essa dedicação o tornaria um bom candidato para suceder-lhe como guia mestre.

Deixou o local de meditação e saltou diretamente para onde a criança estava. Viu que se tratava de uma menina transgênero. Estava sentada ao lado da mãe, que chorava em sua cama pela sua morte. Ela estava com feridas pelo corpo, tentou defender a filha o máximo que pôde de seu assassino, mas não estava preparada.

Entraria em contato com ela, mas primeiro precisava ver como estava a criança, que conhecia a morte pela primeira vez, mas ela não pareceu assustada com sua presença. Se abaixou na frente dela, para poder olhá-la no rosto na mesma altura.

– Quem é você? – a criança disse, brincando com o bicho de pelúcia com o qual havia sido morta
– Sou a deusa da morte.
– Veio me levar?
– Sim. Não tem medo de mim?
– Não. Depois que minha avó morreu, minha mãe me ensinou que não devemos ter medo da morte.
– Qual seu nome?
– Amanda.
– Bem, Amanda, agora eu vou conversar com sua mãe antes de irmos, tudo bem?
– Podemos conversar com os vivos?
– Não como estamos nós conversando agora. É como se eu entrasse na mente dela.
– Posso fazer isso também?
– Não agora, mas você pode aprender com o tempo.

A menina se levantou e foi esperar em outro cômodo. Cassandra sentou no chão e olhou diretamente para a mãe. Precisava ajudá-la a lidar com a dor que sentia para que não se transformasse num ódio que a consumiria.

Durante o contato, percebeu que o crime foi motivado pelo fato da criança ser transgênero. O pai aceitaria um filho e talvez uma filha, com má vontade, mas uma criança como aquela? Era demais para seu ego.

Ela também havia sido humilhada pelo próprio pai pela mesma razão no momento que mais precisava de apoio durante a última vida. Um dos vários fatores que a levaram ao suicídio, mas seus sentimentos não poderiam afetar seu julgamento. Estava ali para dar conforto e assim o fez. Quando terminou, a mãe havia parado de chorar e se sentia um pouco mais aliviada de sua dor.

A criança estava na sala, esperando para ser levada. Quando a deusa veio, apenas lhe deu a mão para ser levada. Era primeira vez em mais de seus dois mil anos de existência que teria de fazer papel de mãe no pós-vida. Agora era sua responsabilidade como guia mestra. Voltou com ela para seu local de meditação.

– Onde nós estamos? – a criança perguntou
– Islândia.
– Mas Islândia não é um país?
– É sim. Enquanto estamos mortas, somos como espíritos, mas podemos andar pelo mundo dos vivos, porque os dois mundos estão, de certa forma, ligados entre si.
– Então eu posso visitar qualquer lugar que quiser?
– Pode. Basta pensar onde quer ir e saltar até lá.
– Saltar? Como pular?
– É como se fosse o nosso teletransporte.

Amanda quis ir em vários lugares, mas sempre terminava pensando naquela que foi sua mãe em vida. Sentia falta dela. Sempre que Cassandra ajudava uma vítima de um crime, ela sentia a necessidade de confrontar seu agressor. Deixou-a com o guia que a chamou só para que pudesse fazer isso.

Aquele que devia ter sido um pai estava preso e não mostrava arrependimentos. Assim como todos os criminosos que haviam cometido crime motivados pelo ódio, ele estava consumido pelo desequilíbrio. Até mesmo aqueles que compartilhavam cela preferiam manter distância, por medo, pois sentiam que algo nele não era normal.

Sentia vontade de puni-lo de alguma forma, mas fazer isso apenas a tornaria como ele. Além disso, forças destrutivas como aquela tinham o único objetivo de causar caos. Depois que morriam, tornavam-se inúteis e desapareciam.

Ao voltar para Amanda, viu que ela estava se dando bem com o guia, tanto, que lhe deu até um nome, Marcos. Ele parecia ter perdido o medo de lidar com crianças e parecia um pouco melancólico por não poder passar mais tempo com ela devido ao seu dever, mas Cassandra o aliviou daquele fardo e permitiu que ele ficasse com ela, sob a condição que a guiaria até que ela sentisse pronta para viver de novo.

Era raro que alguém vivendo pela primeira vez morresse enquanto criança. Quando isso acontecia, geralmente levava alguns anos até que entendesse que seria possível viver de novo, mas aquela menina, era diferente. Bastou alguns meses para que isso acontecesse, e ainda assim, quis viver de novo da mesma forma, como transgênero. Pôde escolher como iria nascer devido ao direito de reparação, o mesmo direito que Cassandra tinha caso quisesse viver mais uma vez.

O que ela não entendia, porém, é a escolha da criança em querer ser do mesmo jeito de novo. Ela mesma, com toda experiência que tinha, jamais passaria pelo mesmo outra vez. O trauma da última vida ainda afetava seu íntimo. 


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