8 de janeiro de 2016

Sou a mulher que fizeram de mim

Reprodução: Sense8 - Netflix
Este texto foi escrito para que as pessoas reflitam a respeito da vivência das outras e que a vida não é uma caixinha e as pessoas não são robôs vivendo algo padronizado, cada um tem suas individualidades.

Essa semana li um texto escrito por uma mulher trans sobre o porque ela se considera “homem em não conformidade de gênero“ (frase usada por feministas radicais para descrever uma mulher trans) ao invés de mulher. Segundo o que ela escreveu, é impossível para uma mulher trans ser chamada de mulher porque não sofreu socialização feminina, consequentemente não sofreu na pele a opressão feminina nas primeiras fases da vida e sua fisiologia “o” impede de experimentar diversas opressões subsequentes, as mais relevantes. Mulher que “ele” conhece é pelo discurso do opressor, do portador de pênis, do macho, e “ele” se identifica com esse discurso, não com a realidade da vivência oprimida da mulher.

Ela ainda sustenta que a mulher trans é um fetiche daquilo o que seria a mulher que deseja. Não vou me envolver demais no texto porque ficou muito surreal. Para começar vou fazer uma referência a uma cena do episódio 9 da 1ª temporada de Sense8 (contém spoiler)(há um video com a cena na página Sense8 Brasil do facebook - para assistir clique aqui). Nomi está sentada em um museu conversando com Lito, e em um determinado momento ela fala sobre parte do seu passado. Ela adora bonecas, mas o pai nunca a perdoou por isso. Quando ela fez 8 anos ele a forçou a entrar em um clube de natação, o mesmo que ele havia frequentado, e havia dito que as coisas que ele aprendeu no vestiário haviam o transformado no homem que ele era hoje. Ela odiava vestiário. Naquela idade ela se sentia constrangida com o próprio corpo e não gostava de ficar nua, muito menos na frente dos outros meninos. Mas o clube requeria que a pessoa tomasse uma ducha antes de entrar na piscina, então fazia isso usando roupas. Os garotos mexiam com ela mas ela apenas tentava ignorar. Funcionou por um tempo. Até que a hora que não funcionava mais. Certo dia os garotos se aproximaram dela e começaram a tirar sua roupa, numa tentativa dela de revidar, eles a levaram para um chuveiro cuja água quente vinha da mesma caldeira que aquecia o radiador. Aquilo lhe causou queimaduras de segundo grau, cujas cicatrizes permaneceram em seu estômago. “Aquele vestiário pode ter transformado meu pai no homem que ele é, mas também me transformou na mulher que sou”.

Sense8 pode ser apenas uma ficção criada com fim de entretenimento, mas a frase “a arte imita a vida” é como eu posso descrever aquela cena.
Quando eu tinha quatro anos, adorava me vestir com as roupas da minha mãe, porque eu me via nela, diferente do meu pai, que via apenas de uma forma diferente. Ela brigava comigo por me vestir com suas roupas e falava para vestir as dele e me “comportar como homem”, mas eu sempre senti nojo delas. Quando entrei para a escola, a turma era dividida, na parte da frente ficavam as meninas e na parte de trás os meninos. Eu sempre quis ficar na parte da frente, mas a professora quando via me tirava de lá e colocava para trás. Uma vez, a menina que sentava de frente para a porta havia faltado e eu sentei lá, mesmo o lugar tendo ficado vago, me tiraram de lá. Conforme o tempo foi passando e eu fui trocando de escolas, cada vez mais eu fui percebendo que as coisas que aconteciam comigo pareciam não estar certas. Da primeira série (hoje 2º ano do fundamental) até a 5ª (hoje 6º ano), sofri muitas agressões verbais por não reproduzir aquilo que os garotos normalmente reproduziam, eu era mais calada e no meu canto, me socializava com os outros alunos, mas não era grande coisa. A partir da 6ª série é que o inferno da escola piorou, quando começaram as agressões físicas. Primeiro foram os tapas na nuca, modinha entre valentões, depois era na hora de ir embora os garotos me segurando e me impedindo de entrar no ônibus, que na época aqui na minha cidade o transporte municipal encontrava-se em crise e a demora era de cerca de uma hora. Uma vez eu me desesperei por ser a última da fila a embarcar, e quando o garoto me segurou, eu acabei dando-lhe um soco na testa, havia me descontrolado. No dia seguinte ele retribuiu o soco e junto de seus conhecidos começaram a me intimidar com constantes ameaças de morte. Aquilo me dava um certo medo, me reprimia e me deixava cada vez mais vulnerável. Certa vez, numa aula de história, o professor substituto havia saído da sala (na época estava dando aula para duas turmas ao mesmo tempo) deixando os alunos respondendo o questionário com base no que estava escrito no livro e eu já havia terminado. A turminha de valentões se aproveitou da ausência dele, pegaram meu caderno e copiaram minhas respostas, eu não gostei e fui na outra sala falar com o professor, ele veio e pegou meu caderno de volta. A partir daquele dia, enquanto não havia professores em sala, as ameaças ficaram ainda mais frequentes, fazendo com que eu após o término das aulas do meu turno, na época à tarde, ficasse sempre uns minutos a mais dentro da escola até ter certeza que eles não estariam me esperando. Eu estava em pânico e não tinha coragem de falar com minha mãe ou alguém da direção. A 7ª série foi um pouco mais tranquila, pois foi a única vez que a escola não havia me colocado na turma dos bagunceiros, mas ainda assim tive alguns problemas. Na 8ª aquele inferno da sexta havia voltado. Dessa vez as agressões estavam um pouco mais severas, e eu havia atingido meu limite, chegou um dia que eu simplesmente falei para minha mãe que não queria mais ir a escola, porque não aguentava mais tudo o que faziam comigo, mas então naquele dia ela falou com meu pai e fomos juntos direto na direção expor o problema, meus pais falaram com os garotos que me agrediam e depois daquele dia as agressões físicas haviam parado, mas as verbais haviam piorado. No primeiro ano do ensino médio, eu estava na pior turma que a escola havia me colocado desde a sexta série. Como eu já não aguentava mais aquilo, sempre que o professor saía da sala eu saia junto e ficava até voltar. Foi assim até o dia que uma garota que estava na minha frente estava atacando bolinhas de papel no garoto da fileira ao lado, ele achou que era eu e chegou um momento que ele pegou sua mochila e jogou na minha direção acertando meu nariz, como tenho muita sensibilidade, me descontrolei, saí correndo atrás dele e simplesmente tentei segurá-lo, mas ele se soltou e me deu um soco forte no nariz, naquele momento eu havia voltado a mim e saí em direção ao banheiro sangrando e chorando e as pessoas a minha volta me olhando chocadas. Só então depois daquele dia eu pude ter paz na escola. Eu era motivo de chacota porque não revidava.

Saindo da escola e falando da vida fora dela, até os dez anos eu era uma pessoa com muita fé, em todas as minhas orações eu desejava que apenas fosse uma menina porque sempre senti que algo estava errado comigo e queria que isso fosse corrigido. Após os dez anos, idade em que eu caí em mim da realidade, eu fui percebendo que a fé é uma coisa que não funciona. Naquele ano eu havia cometido o maior erro da minha vida ao “tentar” ser o homem que tanto me cobravam entrando para um time de futebol num evento anual da associação de moradores para o dia das crianças. Não vou entrar em detalhes do que aconteceu, só posso dizer que foi uma humilhação pública muito grande (coisa que inclusive foi motivo para ainda mais piadinhas no ano seguinte na escola), mas mal sabia eu que era apenas a primeira. A partir de mais ou menos 12 anos minha mãe deixava eu ir na casa de um colega de escola que morava numa rua próxima. Esse garoto abusava bastante de mim (no sentido de tirar proveito, explorar), mas eu demorei a perceber, até que chegou um dia que eu, ele, o primo e a prima dele e um garoto que morava na frente dele estávamos brincando de pique pega, esse garoto caiu sozinho na rua (eu estava muito a frente dele, porque o meu interesse era pegar esse colega) e todos ali me acusaram de ter jogado o garoto no chão. Quando a irmã e a mãe dele (ou tia, não lembro direito) apareceram, fizeram um escândalo imenso. Se naquele dia minha mãe não estivesse lá na casa desse colega, eu teria apanhado muito. Dessas poucas vezes que eu era liberada para brincar na rua, nenhuma delas foi agradável e somando ao que eu passava na escola, ficava presa dentro de casa tendo como companhia apenas a televisão, cadernos de desenho e lápis de cor. Toda vez que eu ficava sozinha presa em meus pensamentos, sempre me martelava o fato de algo estar errado, ficava um vazio, então chegou uma hora que eu havia voltado a me vestir com as roupas da minha mãe e ficava me olhando no espelho. Durante um bom tempo aquilo pareceu bom, mas chegou uma hora que não era mais suficiente, estava faltando algo, eu havia entrado na puberdade e meu corpo estava mudando para uma forma que eu não queria, e então parecia que eu estava entrando num abismo emocional. Com 15 anos eu havia ganho um PlayStation 2 e meses depois um PC, e foi nos jogos que eu jogava no PS2 que eu me isolei da vida, tentei preencher o vazio que sentia. Nos três anos seguintes, até terminar a escola, minha vida se resumia a jogar PS2, jogar um MMORPG (LastWar) no PC e escola.

Após me formar no ensino médio (não houve festa de formatura), jogar não era mais suficiente para preencher esse vazio, sempre faltava algo, então comecei a pesquisar pela internet se haviam outras pessoas que sentiam o mesmo que eu e me aprofundei em procurar respostas e aquilo me ajudou inclusive a abrir mais a mente para outras realidades. Naquela época eu havia começado a respeitar mais os outros. Chegou um momento que após eu ter absorvido tudo o que podia (naquela época, em 2011, informações em português a respeito da transexualidade eram escassas e muito do que eu li tinha que me virar tentando traduzir pelo Google, na época sabia muito pouco de inglês) eu parei e pensei sobre minha vida, como seria meu futuro, que metas poderia tomar. Tentei contar para minha mãe o que estava acontecendo e cheguei a ter uma conversa com ela sobre, mas não conseguir ter coragem de falar que eu era trans. Ela sabia mas não queria admitir. O sonho dela sempre foi ter um filho homem. Conforme fui crescendo, ela sempre me falava que queria me ver casada e com filhos, sempre falava em casamento. Até eu conhecer o feminismo eu não conseguia entender ela, até mesmo porque havia certas coisas que ela se negava a falar comigo, como por exemplo o fato dela querer tanto um filho homem. Hoje eu a entendo, mas não era para ser desse jeito que ela queria. Ela praticamente me criou sozinha dentro de um relacionamento abusivo, então trabalhava bastante para nunca deixar faltar nada dentro de casa (embora meu pai mesmo sendo bastante ausente, ele morava conosco, mas em certos momentos o dinheiro para dentro de casa era menor do que o gasto na rua). Cresci vendo meus pais brigando e ele traindo ela com a vizinha. Eu não batia de frente com meu pai porque tinha medo dele, mas uma vez ele falou uma coisa pra mim que eu nunca vou esquecer. Eu estava jogando o LW no PC (isso foi em 2009) e ele chegou para mim e perguntou: “Você não vai arrumar uma namorada? A maioria dos filhos dos meus colegas estão namorando”. Eu respondi: “o problema é deles, eu é que não quero namorar agora, melhor ficar dentro de casa jogando do que ficar fazendo filho na rua e depois não ter condições de cuidar”. Ele ficou todo sem graça e nunca mais tocou no assunto, porque no íntimo dele era para esse caminho que ele estava indo. Foi a oportunidade perfeita de jogar essa indireta direta. Eu não namorava porque não podia rolar, não podia namorar uma garota porque não achava certo e não podia namorar o único amigo que tive porque ele me veria como homem. Levou muito tempo até cair a ficha que eu sou bissexual e aceitar isso, até mesmo porque a visibilidade bi na época era mínima.

Posso não ter feito uma biografia completa, mas falei sobre parte das coisas que mais me marcaram, posso ter esquecido de alguns detalhes ou acontecimentos, pois foram vários, e outras situações ainda não me sinto bem para falar publicamente. Então rebatendo o que está escrito lá em cima do texto, eu não sou mulher por um fetiche, e se alguém é, ou essa pessoa é um crossdresser (homem cis que se veste com roupas femininas por fetiche) ou então essa pessoa não sabe o que é, e nesse caso eu sugiro que vá procurar ajuda psicológica.

Aí é típico fazerem aquela pergunta “o que é ser mulher?”. Essa é uma pergunta que normalmente quem faz exige uma resposta robótica e padronizada, uma decoreba de escola, mas levando em consideração que as pessoas não têm as mesmas vivências, a resposta para esta questão é humana e individual. A mulher que passou a vida nos condomínios de luxo da Barra não teve a mesma vivência que a mulher que mora na Maré, que também tem vivências diferentes da mulher da Baixada, Região Serrana, Região dos Lagos, Costa Verde, Médio Paraíba, Norte, Noroeste e Sul Fluminense. A mulher que mora em Santa Maria Madalena pode ter passado por coisas que a mulher que mora na Região Oceânica de Niterói não passou, e vice versa. Então, se é para responder o que é ser mulher, eu digo que sou mulher porque a vida me fez assim, foi por causa das dores que eu não sabia que era capaz de lidar, foi por causa das lutas que não sabia que era forte o suficiente para lutar.

Antes de falar que uma mulher trans nunca será mulher por ter tido a falaciosa “privilegiada socialização masculina”, ouça as histórias dela. Dia 29 de janeiro é o dia nacional da visibilidade trans, e aproveitando que no facebook está em circulação a hashtag #MinhaPrimeiraTransfobia, sugiro que as pessoas cis leiam os relatos das pessoas trans, leiam um pouco da vivência de cada uma, e vejam que esse “privilégio” como é defendido pelas ativistas radicais não existe. Além da hashtag existem livros de biografia e algumas ativistas trans costumam publicar suas histórias em seus perfis públicos do face.

Editado: recomendo também a página Invisibilidade Trans

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