18 de setembro de 2019

Estou doente de Brasil


A primeira vez que vi o termo "doente de Brasil" foi no mês passado, através da coluna de um jornalista do espanhol El País. Assim que eu o li, logo pensei: é isso, essa é a base de todos os meus problemas, é a razão pela qual eu tenho depressão e desisti da vida. Hoje de manhã, enquanto via o feed do Facebook, encontrei a publicação de alguém que havia compartilhado um vídeo sobre o tema, gravado pelo canal Normose. O autor classifica o termo como: "A normose, a doença da normalidade, a banalização do absurdo e a inconstância do real a sociedade do espetáculo".

Para quem acompanha este blog desde 2014, isso é, se alguém ainda acompanha, e me conhece pessoalmente, ou pelo Facebook, provavelmente já leu o texto "Sou a mulher que fizeram de mim", onde conto um pouco sobre a minha história em relação a transição de gênero. Naquela época, eu ainda era uma pessoa com esperanças e aprendi a ser positiva, até que tudo ruiu em junho de 2015, quando meu contrato temporário terminou e eu começava a sentir os sintomas de Brasil, sem perceber.

Algumas pessoas até alertaram que se não vivêssemos em uma sociedade tão transfóbica, eu não estaria com depressão. Nunca neguei, mas o problema é que não há muito o que fazer quando até seus pais te odeiam do modo que você é, uma pessoa que viveu seus mais de vinte anos sem uma vida social e que aprendeu a ser isolada como uma forma de autodefesa. Eu não tinha ninguém próximo para dar apoio, apenas pessoas que conheci na internet e que tentaram, mas não podiam entender a complexidade do que me deixava mal. Conversar por messenger ou WhatsApp não é a mesma coisa que poder sair todo fim de semana e conhecer pessoas novas pessoalmente. Isso é assunto para outro texto.

Uma das coisas que mais me deixavam mal na época, era em relação ao dinheiro. A medicação hormonal era cara e eu não conseguia ter fôlego para fazer outras coisas, como cursar um superior ou terminar o inglês avançado, por exemplo. Durante os dois anos em que trabelhei como jovem aprendiz, no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, posso dizer que era a mais dedicada entre todos, mesmo que eu reclamasse daquilo que não achava justo no serviço, sempre fiz tudo o que me pediam, e até além, como ler os últimos despachos dos processos para ter que explicar para um funcionário preguiçoso o porque do mesmo estar sendo entregue em seu local de trabalho, algo que era função deles.

No período em que eu ainda estava na administração, na Praça 15, eu cheguei a fazer guias para ajudar os garotos novos que chegavam para trabalhar, algo que um supervisor havia feito por mim quando comecei a trabalhar. Tais guias não eram exclusivamente daquele edifício específico no qual eu estava, mas de todo o complexo do coração do judiciário fluminense. No fim, os superiores viram o meu empenho com o emprego como um meio de me explorar, enquanto outros enrolavam com o serviço. No final do contrato, fui tratada como lixo e sequer me chamaram para falar no evento de final de ano que faziam com todos os projetos que o TJRJ possuía.

O brasileiro não gosta de pessoas honestas e dedicadas, gosta de gente com carisma, gente que leva na conversa, com o jeito malandro pelo qual o país é conhecido no mundo, mesmo que sejam mal caráter. Fui tratada como lixo porque eu não passava horas babando meus superiores, como aqueles que foram contratados ao final do temporário fizeram.

O melhor exemplo do parágrafo acima veio de um órgão público da Prefeitura do Rio de Janeiro, que supostamente é voltado para tratar dos interesses da população trans e LGB. Em 2016 participei de um projeto chamado "damas" que se resumia a frequentar aulas com o objetivo de preparar a pessoa trans para o mercado de trabalho. No final das aulas, haveria um período prático onde as participantes iriam trabalhar em algum dos órgãos da Prefeitura por três meses, com chance de contratação.

Sabendo da futura mudança na administração da prefeitura, o coordenador da CEDS da época disse que não poderia cumprir com a promessa daqueles três meses porque não tinha dinheiro para pagar pelo serviço prestado. Após a mudança de gestão, o órgão foi mantido, mas a nova coordenação enrolou bastante para cumprir com a promessa da anterior. Depois de muita pressão, em junho de 2017 eles entraram em contato com as participantes e designaram duplas para serem lotadas nas Superintendências Regionais (subprefeituras) da cidade. De início, seriam apenas dois meses, mas depois foram capazes de aumentar para três, conforme o acordo original.

Tijuca, na Zona Norte, havia sido minha indicação. Não era um local com fácil acesso para mim, mas era possível ir. Saía de casa de madrugada para chegar lá às 9h da manhã. Dos três meses que trabalhei, só tive uma falta não justificada, por questão de saúde, e um atraso. Se eu tive três faltas justificadas, digo que é muito, e todas foram para frequentar consultas médicas que já estavam marcadas há meses. No início eu era calada, porque aquele ainda era um ambiente novo para mim, mas nunca fui motivo para receber reclamação. Fui secretária, auxiliar administrativa e técnica em informática, chegando a fazer a manutenção de todos os computadores, já que os técnicos da Prefeitura demoravam bastante a aparecer por lá. Ao final desse período, em setembro, ouvi muitos elogios por parte dos funcionários, que se dependesse deles, continuaria por lá.

Já a outra participante do projeto, era relaxada. Para cada presença, haviam cinco faltas, quase nunca justificadas. Mesmo quando estava presente, não prestava um serviço tão bom, segundo ouvi sem querer. Ela é o tipo de pessoa que a sociedade considera como "lacradora" e é conhecida no meio trans carioca.

Entre uma pessoa que se dedicava ao trabalho e uma relaxada, adivinhem quem foi nomeada para um cargo em comissão na CEDS? Isso mesmo, a relaxada. Mais uma vez, por causa da carisma. E para aumentar o desprezo que sinto pelo Brasil, ainda esse ano o filho do governador do Rio de Janeiro, amigo do prefeito, foi nomeado para o órgão, já que seria nepotismo se fosse comissionado pelo Governo do Estado.

Voltando a 2015: ainda naquele ano eu corri atrás de tentar conseguir acompanhamento médico para a hormonioterapia pelo SUS. Passei pela burocracia de ter que ir a um posto de saúde, para ter um papel assinado pelo médico local para conseguir vaga no único hospital do estado que realiza o acompanhamento. Ainda assim tive que esperar por três meses até que conseguisse realizar a matrícula neste hospital. A única ocasião em que eu consegui receber um dos medicamentos que tomo lá, a ciproterona, foi naquele janeiro de 2016.

Em razão do Governo do Estado não cumprir com o seu dever de fornecer a medicação ao hospital, fui obrigada a procurar a Defensoria Pública para entrar com uma ação judicial contra o Estado. Levou três meses para que a petição inicial fosse protocolada no TJRJ e mais um ano até que eu conseguisse receber o dinheiro do Governo para comprar a medicação, já que eles não eram capazes de fornecer. O Ministério Público, ao invés de exigir que o Governo cumprisse com o seu dever, enrolou, solicitando dezenas de laudos que já estavam presentes em anexo na petição inicial.

De maio de 2017 até o início desse ano, tudo ia bem, até que tudo mudou. A ex-prefeita da cidade onde moro fraudava os processos físicos que tramitavam na Vara Cível da comarca sede daqui, alterando folhas para ficasse de acordo com o seu interesse, chegando a reduzir o valor das indenizações que teria que pagar devido ao dinheiro que desviou dos cofres públicos. Com isso, todos os funcionários da vara foram trocados, além do juiz.

Agora, com um cartório que possui zero disposição para trabalhar, os processos ficam parados por meses, a mesma dor que cabeça que tive com a Vara de Família na minha ação de mudança de documentos. Mesmo os processos de medicamentos com pedido de urgência, como o meu, ficam em fila após conclusão do juiz. Por causa dessa morosidade, já estou sem um dos medicamentos que tomo há mais de dois meses.

Por estar desempregada há mais de quatro anos, nem mesmo posso comprar esses medicamentos, algo que eu sequer deveria cogitar a ter que gastar dinheiro, uma vez que pago todos os impostos para que o Estado cumpra com seus deveres.

São muitos problemas e muitas dores de cabeça. Nascer pobre e no Brasil é um castigo. No início desse ano eu até desisti de procurar emprego. Simplesmente cansei de perder tempo me cadastrando e enviando currículo para milhas de vagas de emprego e nunca receber resposta. Desde 2015, só fui chamada para três entrevistas. Em duas houve preconceito por parte dos entrevistadores e em uma a transfobia foi a razão pela qual "não estava no perfil desejado", tendo ainda que ouvir que "mulher alta é travesti".

Como se isso já não fosse ruim, ainda tive que aturar desaforo do próprio meio trans, pessoas que vieram me atacar porque elas tinham papai e mamãe para pagar tudo por elas, e até mesmo conseguir emprego, enquanto eu cansava de mandar e-mail para as vagas publicadas na página Transempregos e nunca receber resposta.

Sobre essa ex-prefeita mencionada acima, a família dela foi como um feudo aqui na cidade. Passaram anos enriquecendo às custas da população, que os tem como queridinhos porque muitos ganhavam cargos em troca de votos. O município possui uma localização estratégica na Região Metropolitana do RJ, mas é um fim de mundo, área rural, rodeado por mato e boi. Os moradores não possuem o mínimo de infra-estrutura para que uma cidade seja independente. Todo mundo é obrigado a ter que ir para outro lugar, de alguma forma, seja para conseguir coisas básicas como emprego ou saúde.

Ano passado o atual prefeito fechou mais da metade dos postos de saúde, obrigando as pessoas a ter que tirar dinheiro de passagem do bolso para ter acesso a algum PSF, incluindo eu, cuja residência foi designada para uma unidade de saúde que só é acessível após embarcar em dois ônibus para ir e dois para voltar. O transporte público é caro e precário. Cansei de dar sugestões de melhoria, mas as empresas compram a administração pública para que lucrem com um serviço porco.

Preciso passar por uma ressonância magnética, mas conseguir o exame pela rede pública é uma tortura. Primeiro que o hospital onde faço o acompanhamento da hormonioterapia não faz diretamente o cadastro dos pacientes na fila do Sisreg, obrigando a pessoa a ter que ir em um posto de saúde para que o médico local faça um pedido solicitando a inclusão na fila.

Em março desse ano passei por essa burocracia. Além de ter que gastar um dinheiro que nem tenho de onde tirar para ir ao PSF, ainda tive que aturar uma médica que atendeu com tanta má vontade, que parecia que estava sendo forçada a trabalhar. Ela agia como se eu só pudesse resolver um único problema na consulta. Sabendo que nem tão cedo eu vou conseguir esse exame, procurei a Defensoria para passar por outra tortura de conseguir ter outra ação judicial contra o Estado protocolada, algo que só deve acontecer no próximo mês.

Minha última fagulha de esperança de melhora do Brasil morreu com a eleição do atual presidente, somada a uma reclamação que fiz na página de uma empresa de ônibus da região, cujos responsáveis me chamaram de mentirosa e que se eu fiquei uma hora no ponto esperando por um ônibus, foi porque quis, como se eu quisesse ficar uma hora embaixo de um sol de mais de 30°, e ainda ter que ouvir da autarquia responsável pelas permissões que a empresa não estava descumprindo com os horários.

O Brasil é um país que nunca vai mudar, é a vanguarda do atraso, um fracasso desde sua fundação. Foi descoberto ao final da idade média, mas parece que a idade das trevas nunca deixou esse lugar. Sorte daqueles que podem ir para nunca mais voltar.

Um comentário:

  1. Mel, entendo todo seu horror com o Brasil. Mas posso te dizer que ainda há esperança para os que acreditam.
    Por favor, nunca desista de tentar, muitos vezes não se trata de ganhar, mas sim de continuar levantando a cada queda.
    Esse Brasil, regido por pilantras e mal feitores, ainda terá solução, não desistirei nunca.

    ResponderExcluir