29 de novembro de 2018

Vida cibernética


Desde muito tempo a ficção aborda personagens robóticos que são igual ou parecidos com humanos. Diversas são as possibilidades de abordagem do tema, porém a mais comum é a de que as máquinas irão nos dominar.

Há uns três anos assisti Matrix. Um mundo que se tornou metálico e dominado pelas máquinas onde os seres humanos são mantidos em cápsulas que sugam a energia para alimentar os seres metálicos. No entanto, para que as pessoas estejam vivas, foi necessário criar um ambiente virtual que funciona da mesma forma que o mundo atual. Sempre que penso em religião e vejo as pessoas submetendo-se a entidades superiores eu me pergunto se não vivemos dentro de uma Matrix, onde somos manipulados conforme a vontade alheia.

Em maio desse ano foi lançado o jogo Detroit Become Human, que se passa em 2038, ano em que a sociedade dos EUA passa a ser composta por milhares de androides que foram criados para executar funções domésticas e laborais de nível médio, como construção civil, limpeza, segurança, etc.

Às vezes eu penso: e se pudéssemos ser androides? Não lidar com emoções, não sentir fome, medo, dor, não ter que se preocupar com comer, com o que comer, se é gorduroso, se vai engordar, não congelar por sentir frio ou assar por sentir calor, incerteza, inseguranças, não esquecer, não errar, não se esforçar além do normal para aprender algo que tem dificuldade, não ficar doente e poder estar sempre na forma escolhida.

Hoje saí de manhã com tanta ansiedade para não perder o ônibus, que acabei esquecendo de pegar o troco da passagem. Quando lembrei, congelei, porque não poderia perder quase sete reais. Felizmente pude pegar no final da viagem. Meu objetivo era pegar a nova certidão de nascimento, de acordo com minha identidade. Porém o cartório se negou a me fornecê-la sob a alegação que a gratuidade de justiça concedida cobriria apenas a ação judicial e a averbação registral, e esta certidão, mesmo alterada pela primeira vez, seria uma segunda via e eu só poderia obtê-la mediante o pagamento de R$ 111, dinheiro que não tenho. Além disso, todos os documentos, com exceção apenas do passaporte, podem ser obtidos gratuitamente com uma declaração de hipossuficiência. Mesmo que eu pudesse pagar, é errado cobrar por algo que eu tenho direito. Isso me rendeu mais uma dor de cabeça e mais uma despesa de R$ 32 de passagem, dinheiro que me fará falta futuramente, considerando que estou desempregada há três anos.

Estou cansada. Cansada de ter que lutar e ser forte o tempo todo, de lidar com pessoas que acham que sabem ou podem opinar sobre a minha vida da maneira que bem entendem, porque tem pessoas trans que não tem os mesmos problemas que eu, cansada de lidar com o desrespeito e a intolerância, de perder a paciência com a justiça, de ter que fazer papel de advogada para que os processos andem, de ter que ficar indo e vindo para resolver problemas que não teria se fosse cis.

Ano passado, enquanto ainda estava no pior da depressão, eu sentia vontade de me cortar. De ver a lâmina deslizar pela pele e o sangue escorrer. Pensar nisso me dava uma rara sensação de prazer. Nunca tive coragem para fazer, mas estava sempre me cortando acidentalmente, de alguma forma. Depois de meses, voltei a sentir essa sensação. É como uma forma de preencher meu vazio, de superar o fracasso. Queria poder ser capaz de voltar no tempo e fazer com que eu pudesse nascer cis, mas isso não é possível. Talvez pudesse ir para San Junipero, se existisse, ou transferir minha consciência para um corpo de um androide, se isso algum dia for possível.

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