1 de junho de 2021

Por que eu deveria sentir orgulho em ser LGBT?


O mês de junho chegou e a internet logo ė bombardeada com publicações sobre o mês do orgulho LGBT, como se o assunto já não tomasse conta das redes o ano inteiro.

Em maioria, aqueles que estão por trás da maior parte dessas publicações são grandes empresas, que tentam vender uma imagem de diversidade visando uma maior venda de seus produtos, e pessoas brancas de classe média-alta, muitas que sequer se encaixam em alguma das letras da sigla.

Como mulher trans, pobre, "mestiça" e moradora da periferia, venho questionar a militância LGBT o porquê de eu ser obrigada a sentir orgulho de fazer parte da sigla.

Quando eu era criança era muito comum ouvir aquela pergunta "o que você quer ser quando crescer?". Enquanto as crianças à minha volta já planejavam o futuro, eu ainda estava presa ao desejo de querer ser apenas eu mesma, pois cresci sendo obrigada a viver as expectativas daquilo que os meus pais esperavam que um "filho homem" fosse e durante muito tempo eu acabei tentando me encaixar nesse padrão que as pessoas esperavam de mim, vivendo uma mentira.

Nisso eu terminei por entrar em uma depressão tão profunda, que consumiu tanto tempo e energia da minha vida, que quando eu finalmente cheguei lá, movida inclusive pela euforia dos movimentos sociais que vendiam a aceitação de sair do armário como algo tão fantástico, que eu não estava preparada para lidar com o início da queda em mais um abismo após levar um último choque de realidade.

O ano era 2014 e eu tinha 21 anos quando enfim pude começar a hormonioterapia, algo que só foi possível graças ao emprego que tive como jovem aprendiz, no entanto já era uma idade tardia, pois o meu corpo já estava formado e eu já havia passado por todo o inferno da puberdade. Apesar de ter visto algumas mudanças, elas não foram significativas.

Naquela época eu já sabia que não teria apoio no meu meio familiar, que era composto pela minha mãe e avó, mas não esperava que as demais pessoas com quem tinha contato, gente em quem eu confiava para isso, virasse as costas tão logo que eu assumi publicamente minha identidade.

Começou então uma nova etapa da minha já solitária jornada.

Quando meu contrato como jovem aprendiz acabou, todos os elogios que ouvi e todo o esforço que eu dei tentando ser a melhor de todos foram em vão. Sequer ganhei uma carta de recomendação, algo que muitos malandros que enrolavam em serviço e passavam um bom tempo bajulando os outros conseguiram.

Como a medicação hormonal é cara e é algo que eu não poderia bancar sem emprego, busquei garantir o acompanhamento profissional com endocrinologia pelo SUS e levou cerca de seis meses até eu enfim marcar a primeira consulta no Instituto Estadual de Diabete e Endocrinologia, o IEDE, hospital responsável pela hormonioterapia aqui no Estado do Rio de Janeiro.

Em Janeiro de 2016, quando tal consulta ocorreu, foi o único mês que eu tive acesso a um dos medicamentos que uso pelo SUS até abril deste ano, 2021. Naquela época eu já tinha a intenção de entrar com uma ação judicial de alteração no Registro Civil, para adequar meus documentos à minha identidade, mas como não podia pagar por um advogado particular, não tinha outra opção senão buscar a Defensoria Pública. Ao iniciar a peregrinação pela alteração de documentos, aproveitei também para buscar garantir a obtenção da medicação hormonal de maneira gratuita através da justiça, com uma outra ação contra o Governo do Estado.

O primeiro atendimento com a Defensoria aconteceu em março daquele ano, mas as petições iniciais de ambos os processos só foram protocoladas em agosto, depois de muita burocracia desnecessária e extrema morosidade por parte da Defensoria.

Nesse meio tempo, participei de um projeto da Prefeitura do Rio de Janeiro entitulado de "Damas". Por três vezes na semana até dezembro daquele ano eu frequentei um "curso", que em nada acrescentava a alguém que havia terminado o ensino médio, onde o objetivo era preparar formalmente mulheres trans, em especial aquelas que terminam se vendo obrigadas a ter de vender seus corpos para sobreviver através da prostituição, ou estupro pago, e oferecia uma bolsa de R$ 600 para quem frequentasse.

O objetivo do projeto era garantir a empregabilidade das participantes aptas a ocupar vagas de emprego formais, algo que era o meu maior interesse. Dessa bolsa eu tirava cerca de um terço para pagar minha passagem, já que morava em outra cidade, e o que não gastava com a medicação hormonal eu guardava.

Minha avó, que apesar de não aceitar minha identidade, sempre me dava um trocado para comer. Como eu saía de casa pela manhã, era com aquele trocado que eu fazia um lanche em uma pastelaria chinesa após descer do ônibus, onde comprava a promoção do salgado com suco por R$ 5, e era com aquele lanche que eu ficava o dia todo até voltar para casa à noite. Depois de comer eu ainda andava algo entre dois e três quilômetros até meu destino.

Durante toda a duração do curso eu não tive uma falta não justificada sequer e no máximo duas justificadas, para ir ao médico. Atrasos eu tive apenas dois, ainda assim por conta de engarrafamento.

Antes de continuar, vale citar que houve um dia em que o coordenador da CEDS, órgão municipal responsável pelo projeto, levou a cantora Cláudia Ohana para nos apresentar, em primeira mão, um clipe inédito de uma música dela, que retratava um ator galã vestido de mulher e interpretava uma mulher trans, como se aquilo fosse uma maravilha de representatividade, e esse coordenador ainda ficou com raiva porque o vídeo foi rejeitado por todas por não trazer uma atriz mulher trans.

Ao final do curso, com exceção de uma participante que ganhou um contrato terceirizado em um órgão municipal, todas as participantes ficaram com a incerteza de saber se eles iriam cumprir com a palavra, pois também havia sido garantido um "estágio" de três meses, que nos possibilitaria trabalhar em um órgão público com um salário mínimo de segunda a sexta.

A incerteza era devida o fato da mudança de gestão e prefeito, além da alegação de que não havia verba suficiente para o pagamento desse salário a todas, algo que foi desmentido no primeiro trimestre de 2017, onde uma auditoria revelou que a verba estava disponível, mas essa vivência profissional só ocorreu de fato no segundo semestre daquele ano, após muita pressão por parte das participantes.

Durante os três em que trabalhei para uma das subprefeituras (coordenadorias regionais), tive apenas uma falta não justificada porque eu havia passado mal no dia e não estava bem nem para ir em uma emergência, duas faltas justificadas por questão médica e dois atrasos por conta de engarrafamento, algo que me fez inclusive a ter de aprender uma nova rota para conseguir chegar sempre no horário. Enquanto estive lá, sempre dei o melhor de mim para fazer tudo o que me era solicitado, o que me fez ser elogiada pelos meus colegas de trabalho.

Todas as participantes foram divididas em duplas antes de serem enviadas às subprefeituras e a que fazia dupla comigo, para cada presença dela eram dez faltas, e mesmo quando ia era comum os funcionários reclamarem comigo do comportamento dela, que não era nada profissional. No fim ela foi contratada pela CEDS e eu nunca mais recebi nem uma ligação deles.

De todo esse período até o final de 2017 eu enviei milhares de currículos para as mais diversas vagas de emprego. Apesar de muito procurar, fui convidada apenas para três entrevistas, sendo que em duas destas foi visível preconceito por parte do entrevistador. Em uma delas, na última, onde o avaliador era também pastor evangélico, chegou a fazer uma indireta para mim ao dizer, diante de uma sala de trinta pessoas, que na visão dele "mulher alta é travesti".

Ali eu percebi que conseguir emprego no Brasil sendo uma pessoa trans era algo impossível. Esgotada pela depressão depois de muito procurar por um emprego e não conseguir, eu acabei desistindo dos sites convencionais. Soube do tão falado "Transempregos", mas mesmo me candidatando a todas as vagas que apareciam no Rio de Janeiro, nunca recebi a resposta de nenhuma delas, o que me fez concluir que esse site nada mais é do que uma ilusão, um lugar onde empresas anunciam que supostamente estão contratando pessoas trans para gerar uma imagem positiva e uma maior venda de seus produtos, mas que na prática termina não contratando ninguém.

Sem uma renda fixa, fiquei impossibilitada de fazer algum curso, inclusive os gratuitos, pois não tinha como pagar a passagem do deslocamento.

Do meu processo judicial de medicamentos, só fui conseguir ter acesso pela justiça a primeira vez após um ano de tramitação, nisso eu já havia gasto a maior parte do dinheiro que tinha guardado, pois além de gastar com a compra desses medicamentos, eu ainda tinha que gastar com a passagem para ir à Defensoria, que não faz atendimento à distância nem mesmo para processo eletrônico, e também ao cartório da Cara Cível onde o mesmo tramitava para solicitar o andamento, pois se não fizesse isso a ação ficava meses parada.

No final de 2018 saiu a sentença do meu processo de alteração de documentos, deferida, mas apesar de eu ter ficado contente, já não era mais capaz de sentir alegria devido a tudo que eu havia passado até então. Quando mostrei a certidão de nascimento nova para minha mãe, ela simplesmente fingiu que não viu. Era uma conquista pessoal que não teve valor.

A depressão nesse ponto já havia me consumido por completo, especialmente porque em diversos momentos que eu precisava de apoio, muita gente virou as costas e eu inclusive fui humilhada pelo meu pai, que disse "você tem que parar com isso de querer ser mulher e aceitar a natureza que Deus te deu", algo que foi como uma facada nas costas.

Semana passada a placa mãe do meu PC, que tem quase oito anos, entrou em curto, algo que confirmei com um multímetro, e o processador do meu notebook velho, que tem mais de doze anos, queimou, como se eu não precisasse de mais problemas.

Duas vezes na minha vida eu havia considerado o suicídio, porque a dor de viver havia chegado a um momento insuportável, e quando eu lidei com a perda desses dispositivos, pela primeira vez em muito tempo eu quase cheguei ao ponto de enfim pôr um fim em minha vida, mas a angústia que senti foi muito grande e eu acabei não tendo coragem de seguir em frente.

Por sorte, eu tinha guardado no banco dinheiro suficiente para comprar um celular novo, um dinheiro que eu não usava para nada e deixava guardado justamente para uma emergência. Acho que foi isso que me fez ainda estar aqui, como um último recurso desesperado para sobreviver, mas estou cansada disso, cansada de apenas sobreviver, quero mais que isso, quero uma vida com dignidade, uma vida em que eu possa ser independente financeiramente para não ter mais que depender dos outros para tudo, mas sendo uma mulher trans, pobre  e moradora de periferia é como pedir uma vida de luxo.

Diante disso, de toda essa luta, de todo esse esforço, toda essa dor, eu pergunto para a militância caviar que ignora a voz de pessoas como eu, mas que dá destaque à nova tendência da moda das redes sociais - o "não-binarismo": por que eu deveria ter orgulho de ser LGBT?

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