29 de junho de 2017

A vida é boa?

Espelhos
Essa semana um cara do tipo "good vibes" entrou no vagão do metrô que eu estava. Era um artista de rua fazendo poesia em troca de algumas moedas. Com purpurina na barba e sombra azul com brilho nos olhos, ele começou dizendo: "a vida é boa". "A vida é boa, não é?". Não, não é.

Eu tive realmente vontade de responder, mas já estava com olhares negativos o suficiente para sequer me mexer no lugar onde estava sentava. Há quase três anos, quando iniciei a transição, o meu maior medo era acontecer de chegar ao ponto de não ter dinheiro para continuar bancando a medicação. Eu realmente acreditei que as coisas mudariam naquela época e até cheguei a me sentir bem por um ano, mas então eu descobri que era tudo ilusão. Aquele medo se tornou real.

As pessoas que eu achei que podia contar, viraram as costas na hora que mais precisei. Foi então que descobri a verdadeira face dos "good vibes". A primeira foi uma garota que era ex-namorada de um parente. Eu até cheguei a chamá-la e amiga, e talvez nós realmente fôssemos se eu não fosse assim. Toda vez que eu desabafava com ela a respeito do preconceito que sofria, ela menosprezava aquilo e dizia que eu não tinha que reclamar se as pessoas me desrespeitassem propositalmente.

Depois foi um ex-colega de trabalho que achou ruim que eu tinha o marcado numa foto que ele tinha tirado de mim e que postei no facebook. Ele não queria que eu o marcasse em mais nada, pois não queria que o padrasto soubesse que ele era gay (e o que ser gay tem a ver com ser trans? nada), ou do contrário ele deixaria de pagar a faculdade dele. Depois dele vieram outros, pessoas que vivem falando do quanto a vida "é bela", mas que não podem ouvir alguém reclamar que logo falam: "sabia que tem gente pior que você?".

Eu sei que tem gente pior que eu, mas fazer a olimpíada da opressão não vai diminuir a minha dor. E se existe alguém pior que eu, talvez fosse algo a se pensar a respeito da suposta beleza da vida. Mas isso não é algo exclusivo do "good vibes", é algo a respeito das pessoas em geral, que na maioria das vezes não são capazes de entender a imensidão da dor do outro. É muito comum eu ouvir: "conheço alguém que passa pelo mesmo que você e foi capaz de superar". A pessoa ainda admite que conhece alguém que superou uma dor que nem ela sabe o que é sentir na pele. Cada um tem uma vida diferente. Se o conhecido conseguiu superar, talvez ele tivesse a estrutura e o apoio necessários para isso.

Se tem uma coisa que eu posso falar com muita certeza, é que eu tentei. Eu quis mudar, de verdade, mas não depende só de mim. É praticamente impossível não odiar ser eu mesma num país onde um animal doméstico possui mais direitos que eu. Não é menosprezando os animais, mas pensar que a minha vida não vale nada. Após ler uma notícia sobre um atropelamento que aconteceu no ano passado, vi a gravação das imagens de uma câmera de segurança de um estabelecimento em Itaguaí. Em uma rua da cidade, à noite, estavam duas mulheres trans estavam onde a sociedade quer que uma pessoa trans esteja: num ponto de prostituição. No meio da rua tinha um cachorro e ao longe vinha um cara de moto. Ele podia ter parado ou desviado para o canto esquerdo, mas preferiu passar pelo lado direito e atropelar uma daquelas mulheres, que veio a óbito, e fugiu sem prestar socorro, o que torna aquilo um homicídio doloso, com intenção de matar. O assassino nunca foi encontrado e nem será, pois tirou uma vida sem valor.

Com meu estoque de medicação no fim, fui obrigada a reduzir dosagens e com isso vou percebendo que meu corpo está mudando, para pior. Cada vez mais eu ouço piadinhas e falatórios pelos lugares que passo. Eu me sinto como uma palhaça, como se fosse alguma humorista só por querer ser eu mesma e não usar uma máscara, uma fantasia que as pessoas queriam que eu usasse. Hoje no ponto de ônibus eu chorei e não me importei em esconder. Quando o primeiro veio eu não me importei em embarcar, por estar lotado. Uma senhora sentada na janela observava as lágrimas marcadas no meu rosto. Demonstrava pena. Será que ela enxergou um ser humano? Alguém que também tem sentimentos? Alguém que sente dor como todo mundo? Espero que sim, já que todos aqueles que me julgam parecem ver apenas uma figura para fazer chacota.

Eu não deveria me importar, mas isso dói pra cassete. Se amanhã ou depois acontecer me acontecer algo na rua e eu ficar sem dinheiro para voltar para casa, talvez eu nunca mais volte, pois sendo quem sou, o que sou, se eu pedir ajuda, as pessoas vão achar que é para comprar drogas ou algo do tipo. Desde que meu pai me humilhou por eu ser trans, há oito meses, aquelas palavras não saem da minha cabeça. Eu sou o lixo da sociedade. Mesmo que eu nunca tenha me candidatado a cargo político e roubado milhões, eu sou o lixo da sociedade. Nenhuma boa ação que fiz, nenhuma ajuda que dei ou favores que fiz significam algo.

Eu sou o lixo da sociedade. Culpada e condenada por assumir a minha identidade de mulher que teve a infelicidade de nascer no corpo errado. Não sirvo nem para ser recepcionista de salão de beleza. Saber inglês não serve para nada, tal como saber montar ou desmontar meu computador inteiro ou até mesmo instalar o Mac OS nele mesmo sem ser da Apple. "Você escreve bem", todos dizem, mas nada disso não tem valor. Se eu pudesse trocar isso tudo por uma vida normal, eu trocaria, porque cansei de ter que ser forte o tempo todo. Todos os dias ao dormir eu só desejo que nunca acorde no dia seguinte.

A vida não é boa. A vida é ruim. A vida é uma merda. A vida não tem valor, mas a morte, essa sim tem um valor inestimável.

Se o "good vibes" sempre faz uma bela romantização da vida, é porque ele sempre teve toda a estrutura e apoio necessário para não passar por nenhuma dificuldade.

0 comentários:

Postar um comentário